A chuva miuda se misturava a uma nesga de luar, persistente sobre a rua de Elizete, cujos cabelos, ainda revoltos, eram como se acenassem para mim. Ela tocava de Liszt ao piano Sonho de Amor. Embora esse momento envolvente apresentasse certo ar de ficção, algo de romanesco, os meus olhos não se encheram de lágrimas e não viram senão as pedras da rua – duras, reais.
Era preciso voltar. No geral, os corações femininos não compreendem o outro lado da vida. Eu pensava, fazia conjecturas. Pensava na minha vida normal, de trabalho; “tenho de ir, Elizete” Ela a me olhar melancólica; logo a seguir, aperta-me de encontro aos seios; os seus olhos umedecendo-me as faces. “Vai para distante...”, suspirou. “O correio nos aproximará”, eu não tinha mais palavras.
E as portas do coletivo se fecharam. De uma janela à meia luz vinham os últimos acordes de Liszt, só faltando um cello para marcar o adeus e uma precipitada saudade. A chuva a bater na dureza das pedras e a música sumindo à medida que Elizete se distanciava de mim...
Percebi o olhar de uma passageira refletido na vidraça ao lado e me lembrei de Elizete quando a vi pela primeira vez num dos espelhos que muravam uma casa de chá. Destino? Bem no início de minhas férias. Chegara há pouco de São Paulo, desembarcando na rodoviária Novo Rio. Atravessaria a Baía de Guanabara com aquela moça estranha e atraente que residia em Niterói, do outro lado da baía, justamente a cidade onde eu deveria gozar meus dias de descanso. Mas, como nos falamos, como nos conhecemos? De maneira bastante curiosa. Tracei-lhe o perfil em quatorze versos alexandrinos e pedi a um garçon que os levasse a ela. Instantes depois já eu a tinha à minha mesa. Coincidentemente, a moça que eu vira com simpatia no espelho da casa de chá estivera traçando meu perfil a crayon. “Permita-me guardá-lo com muito carinho”, e estendi-lhe a mão.
“Espere...”, disse ela; faltava a dedicatória: duas palavras gentis e enternecedoras. Nesses amáveis minutos de conversa pude admirar-lhe o talento, a beleza, o seu espírito sutil. Disse-o mesmo a ela sem que lhe parecesse lisonja. Sorriu e imaginei que com toda sinceridade. E, como se já nos conhecêssemos maduramente, tomei-lhe o pulso que trazia pequeno relógio; lembrei-me de que era hora de levantar-me para o embarque no cais da praça XV. Elizete faria, também, a travessia marítima: residia no bairro Canto do Rio; “conhece?”. Respondi-lhe que “sim”, que conhecia Niterói na palma da mão, outra coincidência, não?”
“É... trocamos perfis” – disse ela.
“Num clima bem romântico, não acha?” – senti-a ligeiramente debaixo da blusa, logo me desculpando: “perdão, um botão parece ter se soltado, quis apenas fechar sua blusa".
“Não vê que é cedo para certas intimidades?”
“Perdão à zebra...pois é o que sou!”.
Discretamente, ela achou graça.
Tomamos um táxi. Descemos defronte à estação hidroviária. Encostara uma lancha e enorme massa humana cruzava o flutuante, relevada a comparação, com uma agilidade de foragidos. Toda aquela gente apressando-se a fim de ganhar a rua a um só tempo. Havia, quem sabe, um capítulo idêntico ao nosso na vida de algum dos casais que por ali passavam. Elizete estranhou o fato de eu ter sorrido, aparentemente, sem motivo algum. Mas ficou por isso mesmo. Dirigimo-nos, então, para a lancha, uma senhora a cumprimenta espichando um olhar até à mala que eu segurava.
“Quem?” – indago.
“Uma vizinha
A passageira curiosa retorna à vidraça. A impressão que me dá é de querer saber mais do que deveria a meu respeito. Em devaneio, Liszt traz o Sonho de Amor no piano de
Elizete. Estaria ela tocando ainda? Ou, quando o ônibus deixava sua rua, ela corria para o travesseiro?! Elizete, porém, estaria sempre presente. Não a esqueceria nunca.
O espelho da casa de chá, o meu perfil a crayon, o táxi que nos levou até à estação, o piano que tocava até à saída do ônibus, e Elizete: “Você vai distante”...
A passageira que já estava se parecendo com Elizete continuava a me olhar. Tirei um cigarro da carteira com o propósito de anuviar-me os olhos, a arderem mais e mais. Tive um grande alívio quando o coletivo chegou ao ponto final. Desci assoviando, desajeitado, uma música alegre.A cômoda mala que eu trouxera de São Paulo pesava-me. Finalmente, tendo alcançado a estação da frota, uma lágrima correu-me pela face.
° ° °
Antes de partir para São Paulo não me pude furtar a uma visita à casa de chá onde eu a conhecera. E lá estava o espelho que nos aproximara um do outro. Pensei nos perfis, cartões trocados numa tarde de coincidências. Agora sentava-se à sua mesa uma outra pessoa. Mas a figura de Elizete não saíra do espelho.
revista Guanabara, set. 1954, revisto pelo autor, Fernando Henriques Gonçalves. Ilustração de Aurélio Zaluar
Era preciso voltar. No geral, os corações femininos não compreendem o outro lado da vida. Eu pensava, fazia conjecturas. Pensava na minha vida normal, de trabalho; “tenho de ir, Elizete” Ela a me olhar melancólica; logo a seguir, aperta-me de encontro aos seios; os seus olhos umedecendo-me as faces. “Vai para distante...”, suspirou. “O correio nos aproximará”, eu não tinha mais palavras.
E as portas do coletivo se fecharam. De uma janela à meia luz vinham os últimos acordes de Liszt, só faltando um cello para marcar o adeus e uma precipitada saudade. A chuva a bater na dureza das pedras e a música sumindo à medida que Elizete se distanciava de mim...
Percebi o olhar de uma passageira refletido na vidraça ao lado e me lembrei de Elizete quando a vi pela primeira vez num dos espelhos que muravam uma casa de chá. Destino? Bem no início de minhas férias. Chegara há pouco de São Paulo, desembarcando na rodoviária Novo Rio. Atravessaria a Baía de Guanabara com aquela moça estranha e atraente que residia em Niterói, do outro lado da baía, justamente a cidade onde eu deveria gozar meus dias de descanso. Mas, como nos falamos, como nos conhecemos? De maneira bastante curiosa. Tracei-lhe o perfil em quatorze versos alexandrinos e pedi a um garçon que os levasse a ela. Instantes depois já eu a tinha à minha mesa. Coincidentemente, a moça que eu vira com simpatia no espelho da casa de chá estivera traçando meu perfil a crayon. “Permita-me guardá-lo com muito carinho”, e estendi-lhe a mão.
“Espere...”, disse ela; faltava a dedicatória: duas palavras gentis e enternecedoras. Nesses amáveis minutos de conversa pude admirar-lhe o talento, a beleza, o seu espírito sutil. Disse-o mesmo a ela sem que lhe parecesse lisonja. Sorriu e imaginei que com toda sinceridade. E, como se já nos conhecêssemos maduramente, tomei-lhe o pulso que trazia pequeno relógio; lembrei-me de que era hora de levantar-me para o embarque no cais da praça XV. Elizete faria, também, a travessia marítima: residia no bairro Canto do Rio; “conhece?”. Respondi-lhe que “sim”, que conhecia Niterói na palma da mão, outra coincidência, não?”
“É... trocamos perfis” – disse ela.
“Num clima bem romântico, não acha?” – senti-a ligeiramente debaixo da blusa, logo me desculpando: “perdão, um botão parece ter se soltado, quis apenas fechar sua blusa".
“Não vê que é cedo para certas intimidades?”
“Perdão à zebra...pois é o que sou!”.
Discretamente, ela achou graça.
Tomamos um táxi. Descemos defronte à estação hidroviária. Encostara uma lancha e enorme massa humana cruzava o flutuante, relevada a comparação, com uma agilidade de foragidos. Toda aquela gente apressando-se a fim de ganhar a rua a um só tempo. Havia, quem sabe, um capítulo idêntico ao nosso na vida de algum dos casais que por ali passavam. Elizete estranhou o fato de eu ter sorrido, aparentemente, sem motivo algum. Mas ficou por isso mesmo. Dirigimo-nos, então, para a lancha, uma senhora a cumprimenta espichando um olhar até à mala que eu segurava.
“Quem?” – indago.
“Uma vizinha
A passageira curiosa retorna à vidraça. A impressão que me dá é de querer saber mais do que deveria a meu respeito. Em devaneio, Liszt traz o Sonho de Amor no piano de
Elizete. Estaria ela tocando ainda? Ou, quando o ônibus deixava sua rua, ela corria para o travesseiro?! Elizete, porém, estaria sempre presente. Não a esqueceria nunca.
O espelho da casa de chá, o meu perfil a crayon, o táxi que nos levou até à estação, o piano que tocava até à saída do ônibus, e Elizete: “Você vai distante”...
A passageira que já estava se parecendo com Elizete continuava a me olhar. Tirei um cigarro da carteira com o propósito de anuviar-me os olhos, a arderem mais e mais. Tive um grande alívio quando o coletivo chegou ao ponto final. Desci assoviando, desajeitado, uma música alegre.A cômoda mala que eu trouxera de São Paulo pesava-me. Finalmente, tendo alcançado a estação da frota, uma lágrima correu-me pela face.
° ° °
Antes de partir para São Paulo não me pude furtar a uma visita à casa de chá onde eu a conhecera. E lá estava o espelho que nos aproximara um do outro. Pensei nos perfis, cartões trocados numa tarde de coincidências. Agora sentava-se à sua mesa uma outra pessoa. Mas a figura de Elizete não saíra do espelho.
revista Guanabara, set. 1954, revisto pelo autor, Fernando Henriques Gonçalves. Ilustração de Aurélio Zaluar
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