quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O espelho da casa de chá

A chuva miuda se misturava a uma nesga de luar, persistente sobre a rua de Elizete, cujos cabelos, ainda revoltos, eram como se acenassem para mim. Ela tocava de Liszt ao piano Sonho de Amor. Embora esse momento envolvente apresentasse certo ar de ficção, algo de romanesco, os meus olhos não se encheram de lágrimas e não viram senão as pedras da rua – duras, reais.
Era preciso voltar. No geral, os corações femininos não compreendem o outro lado da vida. Eu pensava, fazia conjecturas. Pensava na minha vida normal, de trabalho; “tenho de ir, Elizete” Ela a me olhar melancólica; logo a seguir, aperta-me de encontro aos seios; os seus olhos umedecendo-me as faces. “Vai para distante...”, suspirou. “O correio nos aproximará”, eu não tinha mais palavras.
E as portas do coletivo se fecharam. De uma janela à meia luz vinham os últimos acordes de Liszt, só faltando um cello para marcar o adeus e uma precipitada saudade. A chuva a bater na dureza das pedras e a música sumindo à medida que Elizete se distanciava de mim...
Percebi o olhar de uma passageira refletido na vidraça ao lado e me lembrei de Elizete quando a vi pela primeira vez num dos espelhos que muravam uma casa de chá. Destino? Bem no início de minhas férias. Chegara há pouco de São Paulo, desembarcando na rodoviária Novo Rio. Atravessaria a Baía de Guanabara com aquela moça estranha e atraente que residia em Niterói, do outro lado da baía, justamente a cidade onde eu deveria gozar meus dias de descanso. Mas, como nos falamos, como nos conhecemos? De maneira bastante curiosa. Tracei-lhe o perfil em quatorze versos alexandrinos e pedi a um garçon que os levasse a ela. Instantes depois já eu a tinha à minha mesa. Coincidentemente, a moça que eu vira com simpatia no espelho da casa de chá estivera traçando meu perfil a crayon. “Permita-me guardá-lo com muito carinho”, e estendi-lhe a mão.
“Espere...”, disse ela; faltava a dedicatória: duas palavras gentis e enternecedoras. Nesses amáveis minutos de conversa pude admirar-lhe o talento, a beleza, o seu espírito sutil. Disse-o mesmo a ela sem que lhe parecesse lisonja. Sorriu e imaginei que com toda sinceridade. E, como se já nos conhecêssemos maduramente, tomei-lhe o pulso que trazia pequeno relógio; lembrei-me de que era hora de levantar-me para o embarque no cais da praça XV. Elizete faria, também, a travessia marítima: residia no bairro Canto do Rio; “conhece?”. Respondi-lhe que “sim”, que conhecia Niterói na palma da mão, outra coincidência, não?”
“É... trocamos perfis” – disse ela.
“Num clima bem romântico, não acha?” – senti-a ligeiramente debaixo da blusa, logo me desculpando: “perdão, um botão parece ter se soltado, quis apenas fechar sua blusa".
“Não vê que é cedo para certas intimidades?”
“Perdão à zebra...pois é o que sou!”.
Discretamente, ela achou graça.
Tomamos um táxi. Descemos defronte à estação hidroviária. Encostara uma lancha e enorme massa humana cruzava o flutuante, relevada a comparação, com uma agilidade de foragidos. Toda aquela gente apressando-se a fim de ganhar a rua a um só tempo. Havia, quem sabe, um capítulo idêntico ao nosso na vida de algum dos casais que por ali passavam. Elizete estranhou o fato de eu ter sorrido, aparentemente, sem motivo algum. Mas ficou por isso mesmo. Dirigimo-nos, então, para a lancha, uma senhora a cumprimenta espichando um olhar até à mala que eu segurava.
“Quem?” – indago.
“Uma vizinha
A passageira curiosa retorna à vidraça. A impressão que me dá é de querer saber mais do que deveria a meu respeito. Em devaneio, Liszt traz o Sonho de Amor no piano de
Elizete. Estaria ela tocando ainda? Ou, quando o ônibus deixava sua rua, ela corria para o travesseiro?! Elizete, porém, estaria sempre presente. Não a esqueceria nunca.
O espelho da casa de chá, o meu perfil a crayon, o táxi que nos levou até à estação, o piano que tocava até à saída do ônibus, e Elizete: “Você vai distante”...
A passageira que já estava se parecendo com Elizete continuava a me olhar. Tirei um cigarro da carteira com o propósito de anuviar-me os olhos, a arderem mais e mais. Tive um grande alívio quando o coletivo chegou ao ponto final. Desci assoviando, desajeitado, uma música alegre.A cômoda mala que eu trouxera de São Paulo pesava-me. Finalmente, tendo alcançado a estação da frota, uma lágrima correu-me pela face.

° ° °

Antes de partir para São Paulo não me pude furtar a uma visita à casa de chá onde eu a conhecera. E lá estava o espelho que nos aproximara um do outro. Pensei nos perfis, cartões trocados numa tarde de coincidências. Agora sentava-se à sua mesa uma outra pessoa. Mas a figura de Elizete não saíra do espelho.

revista Guanabara, set. 1954, revisto pelo autor, Fernando Henriques Gonçalves. Ilustração de Aurélio Zaluar

domingo, 14 de dezembro de 2008

Introdução

FERNANDO HENRIQUES GONÇALVES




Novelas

Sumário



Introdução


O colecionador de notícias

Missão genética

Uma história de guerra

Sra. Hamlet

A noiva do passado

Duelo de reis







Introdução


Os textos aqui apresentados vêm de longe. Alguns, do tempo em que era ainda elegante envergar um linho S-120 e calçar um cromo alemão. E pensar que se não tivessem sido publicados, esparsos, na imprensa a partir da década de 50, à exceção de O colecionador de notícias (...) - dos anos já agonizantes do regime proclamado em 1964 no Brasil, ou o que se deu foi uma contrarrevolução? - hoje, talvez amargassem o destino de Ainda Existe uma Canção, que eu pretendia que saísse com um compacto simples encartado na capa. Mas o editor Oscar Mano informava-me que não havia lei, em nosso país, que amparasse tal projecto. As condições que eu praticamente impusera para aquela noveleta entrar em máquina, pela Minerva, lhe foram fatais. O Diário da Noite, do Rio, noticiara meu livro-disco através de Juvenal Portela, após passar a tabloide sob a direção de Alberto Dines. Com o fechamento de A Noite, levara-me Clemente Luz para o Diário da Noite; Carlos Eiras a gabar-se de ser o pioneiro, no Rio, da manchete garrafal: ACABOU A GUERRA (a II Guerra Mundial), e Fernando Chateaubriand a descer à redação, de uma reunião de cúpula, remoendo aos gritos um Fidel Castro que fizesse justiça no império deixado por Assis Chateaubriand. Orlando Motta, o diretor quando lá entrei, a pensar por bom tempo que eu fosse seu conterrâneo, também um 'cabeça chata', porém nada se alterou ao saber-me fluminense. Vão-se os verdes anos e me encontro com Oscar Mano na Avenida Rio Branco, a quem eu chegara pelas mãos do poeta Jacy Pacheco, primo e biógrafo de Noel Rosa e pianista de cinema mudo na mocidade. Alertava-me aquele editor para que fosse buscar o livro no acervo da antiga Minerva. Por não ter ido, creio tê-lo perdido para sempre, e olhe que eu pensava em reescrevê-lo. Junto ou em separado se fora também uma gravação em acetato em que o pianista José Luciano tocava a melodia a título experimental. Em outras circunstâncias, desapareceram numa pequena editora à qual estaria ligado um colunista social, pelo que me contaram, os originais de uma sátira que eu titulara Na Corte da Dama de Preto, anunciada na contracapa de Um Dia Seremos Nós! como já no prelo. Jorge Veiga, personalíssimo roufenho, cantava de Miguel Gustavo: “Doutor em anedota e em champanhota / estou acontecendo no café-soçaite/ só digo enchanté, muito merci e all-right / troquei a luz do dia pela luz da Light./ Agora estou somente contra a Dama de Preto / nos dez mais elegantes eu estou também / adoro Riverside, só pesco em Cabo Frio / decididamente, eu sou gente bem./ Enquanto a plebe rude da cidade dorme”... Era o tempo do tenente Bandeira (Jorge Alberto Franco Bandeira), que se notabilizara no rasto do crime do Sacopã, em cuja ladeira fora encontrado em 7 de abril de 1952 um Citroen preto com o corpo da suposta vítima do militar, o bancário Afrânio Arsênio de Lemos, tendo-se fechado o triângulo com uma mulher, no mínimo, talhada para capa de revista: Marina. E saíram estes versos, guardados na memória como outros, poucos, de uma entrevista com a misteriosa Dama de Preto: Em matéria de poesia, / de quem madame mais gosta: / Araújo Jorge ou Bandeira? / pergunto-lhe docemente: / Por fim, a sua resposta: “Não sabia que o tenente”... O tempo do poeta, em vida, mais popular do Brasil, ignorado pela crítica literária da grande imprensa e recitado nas emissoras de rádio, em programas noturnos, que dele recebiam seus livros com a dispensa dos direitos autorais: J.G. de Araújo Jorge, nomeado o Poeta das Moças. O tempo de Manuel Bandeira - indo-se embora pra Pasárgada ou a imaginar Irene na porta do Céu desobrigada de pedir licença a quem de direito. Enquanto isso, na corte fantasiosa do high society comentava-se: A senhorita Isaurinha / in love está, caidinha / pelo senhor Lino Bento./ Ao que soube este cronista,/ o moço que está na pista / tem um lindo apartamento.// À porta do Night and Day,/ toda noite, já é lei / um certo senhor passar./ O soleníssimo conde,/ que nunca andara de bonde,/ ontem resolveu andar.// Todo mundo-bem anota / em tudo que é champanhota / a presença do Jacinto./ O moço não perde vaza:/ é pontual, não atrasa./ O resto é piupiu. É pinto. Eu me referia a Jacinto de Thormes, personagem de Eça de Queiroz que Maneco Muller encarnara, à sua maneira, no divertidíssimo colunismo social carioca da época. E que dizer de Ibrahim Sued, que aos 22 anos, repórter fotográfico freelancer, colhia um flagrante que o impulsaria à notoriedade vida em frente: o parlamentar constituinte, pela Bahia, Otávio Mangabeira curvando-se para beijar a mão do general Dwight Eisenhower – em visita ao Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados nos idos em que o Rio era Capital da República. A foto histórica amanhece na 1ª página de O Globo, e não tardou que Ibrahim Sued se tornasse o colunista social de maior trânsito e prestígio no grand monde do eixo Rio-São Paulo. E resvala-se em algo como seção de achados e perdidos. Exemplo de que nem todos os perdidos são encontrados é uma “biografia romanceada de Raul de Leoni”, como Gilda Braga Linhares definira seu livro por título Sombra de um Voo, cujos originais, sem cópia, acompanhados de rico material iconográfico, de tanto andarem de mão em mão, a escritora já não sabia mais com quem estavam. Por ela procurado, Carlos Ribeiro, em sua Livraria São José, garantiu ter-lhe devolvido a obra, que a autora chegara a pensar que estivesse com a viúva de Raul de Leoni; a viúva frequentava aquela livraria. Agora, lamento não ter levado para ler em casa os originais de Sombra de um Voo, como queria dona Gilda. Eu receava que se perdessem de minhas mãos, com os fac-símiles de manuscritos do poeta de Luz Mediterranea, de quem Gilda Braga Linhares se recordava a volutear, ainda jovem, numa praça de patinação que havia onde é hoje, inteiramente desfigurado, o Rink de Niterói. Longe de mim avançar à hipótese de se tratar de um caso de ciúme póstumo o sumiço de Sombra de um Voo, que aguardava quem se interessasse em editá-lo, e apressara-me a dar a notícia, como repórter do Jornal do Brasil, numa matéria sobre a vida cultural na capital do antigo Estado do Rio. Também meu único exemplar de Um Dia Seremos Nós!, com suas 32 páginas e uma ilustração de Sílvia León Chalréo na capa, esteve desaparecido por um tempo, durante o qual fui à procura de algum em livrarias; de preferência, naturalmente, em sebos, excluindo-se bibliotecas, porque o livro, que saíra pela Editorial Vitória ainda que sem o seu selo, em nenhuma delas havia sido deixado. Enfim, acho o único exemplar que eu guardava em meio a uma barafunda em que se transformara meu escritório; o gerente de um sebo havia me explicado que até escritor de renome, decorrido certo tempo, ficava exposto a cair na reciclagem; inquisitorial? Já era o consumismo, nada mais que isso. Livro, bobagem defini-lo pelo número de páginas. Aquele meu primeiro tivera boa acolhida pela crítica. Sílvia ajudou a empurrá-lo, por sua influência no meio cultural inclusive do exterior, e dona Gilda traduzira para o francês um soneto meu, composto sob o impacto da execução, na cadeira elétrica de Sing Sing, do casal Julius e Ethel Rosemberg. Assim, também a versão francesa de Mártires da Paz acaba fazendo parte de Um Dia Seremos Nós!, e publicada na França através de uma amiga, escritora e militante política, de Gilda Braga Linhares. Vejam como ficou: Victimes de la Paix (In memoriam de Julius et Ethel Rosenberg, executès à Sing Sing le 19 juin 1953) Quelqu’um le racontera: C’était une Maison Blanche / ou, tout le monde en vain, mais de saine conscience / clamait, douloureusement, en prières de clemence / pour sauver deux vies, dont la senteur loyale et libertée / l’humanité acceuille et le chauvinisme rosse./ Tu le fixeras - Histoire Amie - avec ardeur: Sing-Sing remplie, de haine et violence. / D’une Maison Blanche, tu fixeras la negreur... / Âmes martyrisées! Les seuils s’ébranleront / au glissement de deux ombres – là bas, bien au fond./ Tu saisiras la croix que remarquait le quai. / Âmes martyrisées! Les clameurs nous éconterons:- / C’était une Maison Blanche, d’où tout le monde, / à genoux, vit l’ascension des victimes de la Paix... Os Rosenberg transpunham o ‘corredor da morte’ e eu fazia 20 anos. Mas não se esvaíra a esperança de que um dia seríamos Nós! Antes do livro, publicado em 1955, uma mensagem de Natal - de dezembro do ano anterior - que o escritor De Azevedo Rolim, autor de Pelos Caminhos do Brasil e outras obras, prosa e poesia, responde com versos chamejantes sob o título Agora já somos Nós: Sim, meu caríssimo poeta / - alma sensível de esteta, / pensamento de albatroz...: / o ‘mundo marcha’, lutemos / pois na certa venceremos / e... ‘Um dia seremos Nós!’ // Sempre integrados no povo, / pela Paz e o Mundo Novo / que além surge, entre arrebóis, / unamos as nossas liras, / da prepotencia ante as iras, / que... ‘Um dia seremos Nós!’ // Estremece o imperialismo / em face do patriotismo / dos povos erguendo a voz... / Sejamos parte integrante / dessa arrancada triunfante / ...‘Um dia seremos Nós!’ // Da nossa Pátria aos algozes / - e aos seus traidores ferozes, / quebremos o jugo atroz / reforçando as barricadas / do povo nas arrancadas, / que ‘Um dia seremos Nós!’ // Do atraso que nos degrada, / ao sol da nova Alvorada, / rompamos, de vez, os nós, / para gritar, repetindo, / na voz do mundo sorrindo: / Agora já somos Nós! Pouco antes do apeamento do governo constitucional do presidente Goulart e da caça a Leonel Brizola, então governador do Rio Grande, em 1964 eu publicava, de novo com capa de Sílvia Chalréo, A Noite Morre no Relógio, que ganharia pronto destaque na coluna literária de Lago Burnett, no Jornal do Brasil, provavelmente por causa do poema Comício. Tirei cópias da coluna de Burnett e algumas lojas de comércio as expuseram, a meu pedido, em suas vitrinas. Milhões de brasileiros, não imaginávamos que a revolução iniciada, ou anunciada, por Goulart e Brizola com o nome de Reformas de Base viesse a ser contra-atacada por militares e civis apoiados no sanguinário paiol de doutrinas da ‘diplomacia’ norte-americana. Veio, então, o golpe. Tendo sido eu informado de que meu apartamento, em Niterói, estava numa lista para ser ‘visitado’ no dia seguinte, o que de fato aconteceu. E me encontro com o poeta, ex-empresário de uma Arca de Brinquedos Cirandinha (a Arca ocupara um conjunto de salas na Avenida Rio Branco) e recordista nacional em venda de coleções de livros - Geraldo Marques, que mudara de ramo. Dizia-me ele na entrada de uma loja de artigos religiosos, praticamente numa das esquinas mais movimentadas da Av. Amaral Peixoto: “Querendo guardar alguns livros com toda segurança e proteção, estou aqui”. Trago logo para a loja a maior quantidade de exemplares da edição de A Noite Morre no Relógio. Com efeito, nenhum macaco da ‘Redentora’ pôs os pés naquele espaço; salvara-se, pois, mais uma alma... Os beleguins da ‘Redentora’ não deixaram livro sobre livro que lhes causasse suspeitas de peças de artilharia, pelo que vizinhos me contaram, tendo sido a porta arrombada. O que mais senti foi terem levado uma moviola, a ‘chapliniana’, como eu a batizara, uma máquina de cinema tocada a manivela, o maior presente de Natal que já tinha recebido, com pequenos rolos de filmes – destacando-se vários de Chaplin - cedidos a meu pai por Martins, dono do cine-teatro de Cantagalo. E em 1964, aos 31 anos, acusavam-me de projetar ideias subversivas, no que mais podia ser? - sobre um velho lençol estirado numa parede distante, onde eram feitas as projeções.

O colecionador de notícias


Os zavecos confinam com os líbios-máxias.
Quando vão à guerra, são as mulheres que
conduzem os carros.

Heródoto de Halicarnasso,
o Pai da História
e/ou da Reportagem


Um besouro a bater letras. A bater, não; a fazê-las em surdina, as letras lembrando de relance o talhe gótico. Um besouro made in USA. Que outra criatura pode ser? - Francis se pergunta, a esquadrinhar esse corpo singular, avesso ao bate-bate do jornal.
Imaginem o vazio quando a redação estiver contaminada desses besouros, substituídas também as nossas máquinas de escrever por espécimes eletrônicos.
Espero já estar aposentado.
Ao lado do besouro da AE, o velho teletipo da UPI: uma locomotiva.
Pascal, o secretário da noite, vê na novidade uma peça ambiental, um achado. Ao que Francis rebate com a observação de que, a pretexto de combater a poluição sonora, impõem a lei do silêncio numa redação de jornal como se até no exercício de nossa profissão fôssemos condôminos ou inquilinos. Certos tipos de silêncio poluem mais que os decibeis de uma buzina de carro; e afasta-se aos resmungos.

Francis! Para você.
Corre, deve ser Luísa; não era. Estou ouvindo! Na edição de amanhã, pela hora, não será possível dar. Sai no dia da inauguração. Afinal, vai ser de noite. Opa! Algum dia lhe faltei? Durma tranquilo. Com sua anjinha. Ora ora, aleluia! Quer dizer que hoje começaram as suas férias conjugais. Não, não estou insinuando coisíssima.... Até mesmo porque sua mulher merece inteira fidelidade. Acalme-se que a nota sai a tempo.
Bateu-a de uma vez. Da inauguração de uma livraria, que publicara há dias, esquecendo-se de repetir para a véspera. Ele a deixa no escaninho de amenidades: Sociais etc., com uma recomendação ao Mário-Antônio e votos para que estivesse melhor das disfunções neurovegetativas. Do ofício de comunicador; perdão, de jornalista. Eu, meu caro, vou recheando minhas disfunções com a própria vida que carrego. E sabe que tem dado certo?
Volta aos teletipos: o Siemens da AFP, o modelão da UPI, que tão antigo perdera a marca, não a cadência; o Teleprinter Extel da AE, a escrever gracioso e praticamente em silêncio, de angustiar, e o Olivetti da Embratel, enorme porém de geração recente.

Acompanhar as recepções de notícias do mundo todo, o que Francis costumava fazer depois de editar a página de fechamento do jornal. Um passatempo para ele enquanto aguardava a hora de largar e obrigação de Pascal, mas era Francis quem quase sempre, nesse seu entretem, no turno final, recebia notícia que não podiam deixar de publicar, em substituição a alguma de menor interesse baixada à oficina.
Vivia toque por toque o telex, letra por letra, contanto que além de ver também ouvisse a notícia chegar: marcial. Não da maneira como o Teleprinter trazia: desovando.
Não lhe parece uma dessas maquinazinhas de bater carta pra namorado?
Também irônico, Pascal diz a Francis que a observação dele era típica do reacionário; correção: do neo-reacionário, aquele que recusa a infalibilidade da cibernética. Tem de aceitá-la, Francis. Agora o carro anda mesmo adiante dos bois.
A puxar os bois - como Francis via o carro. Concluindo que isso explicava a teoria da massificação.

A locomotiva:
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SP-130 HEROINA


WASHINGTON, 8 UPI - O PROCURADOR GERAL DO MEXICO, PEDRO OJEDA PAULLEDA, DECLAROU HOJE QUE SEU PAIS INICIOU ESTE ANO UM PROGRAMA EM GRANDE ESCALA PARA DESTRUIR OS CULTIVOS DA AMAPOLA, PRINCIPAL FONTE DO TRAFICO ILEGAL DE HEROINA AOS ESTADOS UNIDOS.
OJEDA REVELOU QUE GRUPOS DA POLICIA FEDERAL E TROPAS DO EXERCITO MEXICANO INICIARAM, EM NOVEMBRO PASSADO, UM PROGRAMA COM HERBICIDAS QUE DESTRUIU QUASE QUE TOTALMENTE AS PLANTACOES DE AMAPOLAS NO MEXICO. A AMAPOLA EH A MATERIA PRIMA DA QUAL

Francis!

Deve ser Luísa.

- Francis?
- Ele.
- Adivinhe.

(Amapola, lindíssima amapola, será siempre mi alma tuya sola...)

- ...um suco de tomate?
- Bel! há quanto tempo! Quando soube que você não faria mais voos para o Brasil e como eu não recebesse um só postal do Capitólio, pensei: Isabel casou-se com um texano e se plantou definitivamente em terra.
- Que é isso...! Não me amarrei.
- Está falando de onde?
- De casa, sô!
- Mineira, sempre.
- Agora, mais do que nunca.
- Quer dizer...
- Vim para ficar. Recriar raízes. Eu estava indo muito bem lá fora, sabe? Profissionalmente, não tenho do que me queixar. Mas o diacho da saudade daqui, de nossas coisas, da nossa gente, enfim, dessa vidinha descontraída... Claro que longe da temporada de caça às bruxas!

(A aeromoça, ainda sem nome para ele, a levá-lo pelo braço para uma poltrona atrás, mais receptiva ao oxigênio. Ele pela primeira vez sentira-se mal a bordo, a garganta apertando. Ela senta-se a seu lado; quer um suco de tomate?).

- Alô, está me ouvindo?
- Sim, Bel.
- Cheguei ontem e hoje não resisti à tentação de lhe telefonar. Nem sei se deveria... Passaram-se quase cinco anos e durante esse tempo muita coisa pode ter mudado.
- Mudou o governo. O sistema é o mesmo.
- Quero saber de você.

(O seu primeiro voo no quarto com Isabel, de incontida imaginação)

- Continuo à margem do sistema: não me casei; se é o que deseja saber.

Era, e Bel em casa aguardando a mãe, que chegaria de Minas no dia seguinte. Bel, ansiosa por revê-lo já essa noite. Ela não disse mas deu a entender, inclusive pelo fato de ter sido desocupada a casa alugada por todo esse tempo, com móveis e telefone.
Francis se apressa. Luísa, naturalmente, tentara ligação; por outro número ela não faria.
Fechada a gaveta, Pascal a troçar. O paletó no braço, do trabalho no ministério; a gravata fica pra você, Pascal.
O telefone toca, só pode ser Luísa; um sinal para Pascal.

Já saiu.

"Quer um suco de tomate?" e Francis volta a respirar.
Luísa nem fez ano, Pascal. Bel tem muito mais tempo. Sem considerar a contagem regressiva. Ah, já ia esquecendo mais uma para a coleção. Minha coleção de notícias,
secretário da noite! Hoje, levo a das amapolas.

Colecionava notícias que raramente o seu jornal dava, por causa da hora da transmissão: um pouco tarde ou tarde mesmo, a edição praticamente pronta para rodar, aberta apenas a substituições de maior interesse informativo. Algumas passavam ao escaninho do colunista Mário-Antônio para eventual aproveitamento em Sociais etc. como informações ligeiras.
Guardava tal como chegavam, para sua coleção, o picaresco e o inusitado do noticiário de Londres, Paris, Nova York, de outros centros mundiais do gossip.
A notícia das amapolas não cabia bem nesta sua distração, porque a rigor ele juntava telegramas na linha do realismo fantástico ou, como preferia, do parvinismo, tendo-a separado somente por ela lhe recordar, sem as cores alucinógenas, bons momentos de sua passagem pelo México.
Com Isabel.
A canção de Lacalle a mordicar à meia-luz, os seios de Bel aquentados de amor; dava para senti-los assim, na dança. Yo te quiero, amada linda mía, igual que ama la flor...

Táxi!

...la luz del día. Isabel de volta como que por obra e graça da Virgem de Guadalupe. A basílica da Virgem, o que visitaram primeiro. E os mexicanos falavam de incríveis interveniências da santa no destino de casais como eles dois.
O táxi desliza para o reencontro, entra na rua de Isabel, e Francis, tenso, desce ao lado de um bar, entra: um chope suado para refrescar a mufa; Luísa há de entender. Ele procura abstrair-se caminhando para a porta de Bel.

O corpo de sempre; uma dália... não, a amapola sem passar a heroína, no puro estado de flor: viagem que faz sentido. De sempre mas o alumbramento, e pascendo desse alumbramento chegam ao outro dia.
A manhã para dormir e a mãe de Isabel, dona Almira, trazida de carro pelo filho colecionador de insígnias de guerra, a buzina, de quanto tempo tocando... Flamengo Flamengo! Nossa glória é lutar... nem Bel nem ele, Francis, tinham a menor ideia, e chi! mais de meio-dia; num pulo, a irem se ajeitando como podiam, ela para abrir o cadeado do portão e ele para a espera na sala.
Depois, a pensar o que dizer a Luísa ou em nada dizer, por enquanto; não, mais sensato acabar de uma vez que aos poucos. Mais por ela, Luísa, vida ainda pela frente, o bastante para novo par e, quem sabe, definitivo. Entanto, não foi sem antes ouvir da irmã o que achava, e Beatriz se nada achasse: De foro íntimo.
A chegar atrasado no ministério, e chegaria, mesmo que ficasse o encontro com Luísa para outra hora, melhor faltar, e isso Beatriz, pelo telefone, justificou inventando um torcicolo.
Coisa que não me peça mais para fazer.

O diagramador d’Artagnan voltando de férias com o seu anedotário na noite em que se teve notícia da rainha Elizabeth II a passear a coroa britânica, de limusine, pelas ruas do coração de Manhattan.
Na esquina o mendigo chamou o homem que lhe dera uma cédula de 500 cruzeiros e indagou se não se enganara na esmola. O homem respondeu que não, dinheiro para ele que nem água na fonte, tão grande a sua estrela!, e a apontou para o mendigo, pejando-lhe os olhos. O mendigo disse que gostaria muito de dar uma voltinha nela, e o homem da estrela o aconselhou a pedir-lhe diretamente. O mendigo não vacilou. Subiu e fez o pedido: vivia na merda lá embaixo e o que custava a boa estrela permitir uma voltinha? Ela prontamente reagiu proclamando-se honestíssima; nenhum outro homem... fosse para uma bolinada. Procurasse a dele, que embora quase se apagando - quem sabe o ajudaria uma vezinha na vida. E o mendigo a procurá-la céu adentro. De tanto patinar, acaba embicando numa nuvem até que uma luzinha o reconhece: Então és tu, seu espertalhão? Foi só eu dar um cochilo e botas a mão na nota de quinhentos!

A anedocta da estrela que cochilara desopilava ainda a redação e a Francis pareceu que o teletipo mais barulhento do jornal media com d’Artagnan na arte de contar.

NOVA YORK, 9 (UPI) - A BAILARINA ARGENTINA FANNE FOX, QUE LEVOU A RUINA POLITICA O DEPUTADO WILBUR MILLS, ANUNCIOU, HOJE, QUE VAI RECEBER 1 MILHÃO DE DOLARES (CR$ 10 MILHÕES E 800 MIL) PARA ESTRELAR UM FILME QUE NARRARAH AS SUAS AVENTURAS SENTIMENTAIS.
UM PORTA-VOZ DA BAILARINA DECLAROU QUE A EMPRESA TRANS WORD ATTRACTIONS, RESPONSAVEL PELO FILME “THE FANNE FOX STORY”, PRETENDE CONVIDAR MILLS PARA PARTICIPAR DAS RODAGENS, FAZENDO O PAPEL DE SI MESMO.

Mais um telegrama para a coleção. Esse da bailarina, que dispensava outros termos, Francis fez foi copiar, sem comer palavra, a fim de ajudar na correção das disfunções do colunista social.

Para você, campeão!

Deve ser Bel, e era Luísa.
- Estou fonando para avisar que deixarei uns trens seus amanhã na casa da Beatriz.
- Está bem, Luísa, mas que trens são esses?
- Uns livros. Entre eles um de Comunicação e o que você apanhou na lixeira do prédio aquela vez, O Morro dos Ventos Uivantes; por sinal, já bem surradinho.
- São seus, Luísa.
- Estão tomando espaço.
- Nesse caso, faz o seguinte: põe o livro de Comunicação na lixeira e guarda o de Emily Brontë.
- Não brinque.
- Falo sério.
(O besouro a desovar e os teóricos da Comunicação disputando o papel de guru da geração marketing).
- Ah, tem também uma gravata!
(Quartito azul... O tango à meia-noite na Lapa dos tempos sedosos dos cabarés).
- A de palha-de-seda?
- É.
- A gravata eu quero, para enforcar esses teóricos, mas não precisa correr na limpeza, Luísa. Que é isso! Parece até que rompemos em tudo. Creio ter ficado nossa amizade.
- A amizade. Bem, Francis, levo a gravata e os Ventos Uivantes e mais algum livro que possa te interessar.
- Escute, minha querida. Basta levar a palha-de-seda e, estando com você, aquele livro de Gipson de Freitas... Os Possuídos. Estou para preparar um trabalho sobre o parvinismo. E não me queira mal, Luísa. Um beijo.
- Guarde-o para a aeromoça.

Bel voara mundo sem que lhe escrevesse uma linha em todo o seu tempo fora do Brasil. A princípio não havia explicação, pela cabeça de Francis, para tão duradouro mutismo; um cartão de natal sequer. Verdade que nas cartas para dona Almira perguntava Bel como estava ele, mas dona Almira, uma das vezes em que de Minas viera para receber o aluguel da casa, mostrou-lhe uma das cartas, que dizia: “Só não escrevo ao Francis para evitar que os sentimentos conflitem com as oportunidades que me têm sido oferecidas na América”.
As oportunidades, o fio de olvidar. Da parte dela e, o que fazer, da dele também. E sofrera o desejo de pedir seu endereço a dona Almira, que nas poucas ocasiões em que o viu não lhe deu a menor chance, preocupada talvez em manter a filha a distância de um amor sem futuro; quem procedia desse modo, Bel, não pensava de outro.

Um domingo à tarde no apartamento dele, que ela modificara todo na posição dos móveis, incluindo a geladeira, até o fogão. O quarto então, com cama nova; a velha, cheirando à outra, Cristina, a empregada, levou. A cômoda no lado oposto ao do agrado de Luísa e no espelho, também recolocado no lugar antigo, o corpo refletido da amante que voltara, podendo agora, como naquele tempo e feito cinema, assistir a seu despir. Venha, Francis, que assim me penitencio; amor sem futuro... Depois vou querer ouvir Omar Kháyyám, cê lê para mim?
Refeita a cama e o domingo escurecendo, os dias passam rápidos como as águas do rio ou o vento do deserto. Dois dias há, em particular, que me são indiferentes: o que passou ontem, o que virá amanhã.
E a foi sentindo explicada na filosofia de Omar. Bel a despertar nele, Francis, certa compreensão pelo hiato havido, o entreamor.
Do mesmo modo que o besouro do jornal, por desovar. Tinha a ressalvar na redação, um pouco de lado a irreverência, que pensando-se bem a agência do besouro eletronico, mais que peça ambiental, até que aproveitava com mestria o degelo da expressão.
Escurecera. Bel para casa, o leão da Metro abrindo a sessão-coruja na tevê e a própria boca, agora sonolento, antigamente amedrontava; Francis desliga, cai na cama, um sono direto, sem escala, Rio-Paris, e em pouco se vê, a alma a esboçar o corpo, movendo-se sobre a face das águas.
Nesse exercício de deificação, o primeiro do Gênesis por Moisés, Francis pede e não manda, aí a diferença, que se faça a luz, e após testá-la a separa das trevas. Todos os anos ele reservava uma semana que fosse para exercitar-se, sem prejuízo de suas atividades de mortal, da profissão e do amor. Apreciava civilizadamente mulheres pela rua, parava em frente de bancas de jornais.
Separada das trevas a luz, descerrados os céus, feita a terra - para produzir, feitos os mares, Francis chega ao dia quarto da Criação, dia de pôr as estrelas. Antes dos répteis, antes do homem, e enrugou.
Observe-se que degelo em país tropical se passa dentro de geladeira. E uma geladeira, Pascal, nunca chega a ir ao sol para enxugar e voltar a fazer gelo. Durante a descongelação, pelo menos, rareia a figura do censor de notícias.

013/RIO, AGO.5 (AE) - SEM A PRESENÇA ESPONTÂNEA DE BLOCOS E ALAS DE ESCOLAS DE SAMBA, VETADA POR FUNCIONARIOS PARA NÃO OFUSCAR O GOVERNADOR

Francis! - corta d’Artagnan.-Um alô pra você!

,E COM UM ACIDENTE - UMA REPORTER MACHUCOU O PEH E A PERNA AO CAIR NUMA VALETA DESTAMPADA A SUA ENTRADA - FOI INAUGURADO HOJE, DATA DO 21. ANIVERSARIO DA MORTE DA CANTORA, O MUSEU CARMEN MIRANDA, QUE VAI EXIBIR 1.596 PEÇAS QUE LHE PERTENCERAM
MAIS DE VINTE INTEGRANTES DO FAN CLUBE CARMEN MIRANDA, CUJA SEDE EH EM BRASÍLIA, ALEM DE SUAS DUAS IRMAS AURORA E CECILIA, E MUITOS DOS SEUS COMPANHEIROS DA EPOCA DO RADIO, COMO OS COMPOSITORES HERIVELTO MARTINS E SINVAL SILVA, ASSISTIRAM A SOLENIDADE DE ABERTURA DO MUSEU,

Ih! Pascal já ia se esquecendo da entrevista do presidente da Aliança Renovadora Nacional, que viera truncada, e chama Brasília pelo teletipo da Embratel.

PLS, CELIO CORTES ESTAH AHI?

MOM
ESTOU+ DIGA
OI, MEU ANJO, AQUI PASCAL, BOA NOITE. CORTES, ESTOU COM UM PROBLEMA DE SUMA GRAVIDEZ... EH A MATERIA DO FRANCELINO PEREIRA, SE NÃO ME ENGANO A DE N. 030, DAH PRO AMIGO REPETIR POR AQUI?

MOOMOM
PASCAL, VELHO. LAMENTO. MAS ESTOU SEM MONITORA DESDE 18 HORAS. ESTOU PROCEDENDO MODIFICACOES AQUI E ESTOU ABSOLUTAMENTE SEM CONTROLE DE RECEPCAO. LAMENTO MESMO, MEU CARO$

EH ISSO, GAROTAO. ENTAO MANDA POR FAVOR O TELE FO TELEFONE DE SPAULO QUE VOU DAR UM PLA PRA LAH, OK?

QUER O TELEX?

NÃO, O FONE DO SALGADO.

MOM
2667099 PEDE PRA LIGAR PRA AGENCIA.

ISSO AQUI, CORTES. TE AGUARDO QUALQUER DIA DESSES PRA GENTE RESOLVER AQUELE PROBLEMA DAS LOURINHAS, APESAR DESTE FRO FRIO BARBARO...

FALOU PASCAL VELHO. APARECE TAMBEM, PARA UMAS BRANQUINHAS. GRANDE ABRAÇO E DESCULPE NÃO PODER TE-LO SERVIDO. FORTE ABRACO, UMA BOA NOITE E BOM SERVICO PA+

ISSO CORTES OBRIGADO BOA NOITE E BYBYBYBY

NAS VITRINES DO MUSEU PODEM SER VISTAS AS FAMOSAS FANTASIAS DE CARMEN, QUE FIZERAM SUCESSO EM HOLLYWOOD, INCLUSIVE A PRIMEIRA BAIANA QUE ELA CRIOU, EM 1939,

Pela sua cara - o secretário da noite a perscrutar Francis - já sei que era Luísa.
Ela mesma. Telefonou para dizer que encontrara Os Possuídos de Gipson. E que a costureira, sempre apressada, levara por engano o livro de Comunicação, metendo-o na bolsa em vez de uma codificação de leis do inquilinato que ela comprou, veja só, para dar de presente ao senhorio. Mas que logo que a costureira voltar pra desfazer o engano, atente para o pormenor, ela, Luísa, põe a aldeia global na lixeira, seguindo minhas instruções.
Afinal, Francis: Luísa ou a aeromoça? - Pascal a retirar do besouro da AE o telegrama sobre o museu de Carmen Miranda. E vem d’Artagnan com a pergunta, se sabiam o apelido dos paraquedistas da guerra do Vietnã.
Ele próprio responde: Cocô de avião.
Francis despede a imaginação e entra na estátua da Liberdade como um daqueles veteranos do Vietnã que dias atrás se tinham fechado nela, durante horas, em protesto contra a redução, pelo governo, de suas verbas de auxílio.
Francis, contudo, não fez mais que respirar dentro da estátua, logo puxado de volta à redação por d’Artagnan:
E sabe o que o urubu disse para o irmão quando viu passar um Boeing?

Han?!

Com fogo no rabo, até eu!

O urubu falando do jato seria mais divertido se não tivesse a aeromoça trazido o suco de tomate, embora o avião em que se conheceram não passasse assim tão depressa, pensou Francis. E ficado junto dele um pouco da eternidade de seus olhos, dos olhos de, me chamo Isabel, mas Bel não lhe parece que basta? Um pouco que, de igual modo, lhe bastou para guardá-los, na forma e na cor: duas ameixas. Na cor, os olhos de Bel assomando de nuvens bem próximas da lua - vista do coração, o da espécie que Frederic Rückert dividira em dois quartos: um para a dor, o outro para o prazer. A dor do entreamor, Luísa como recheio, por sinal o recheio adequado, e o prazer do reencontro com Isabel. Com Bel, o suficiente.
No coração da lírica de Rückert, agora o quarto da dor fechado por fora, dentro a dor, naturalmente; a chave com o destino, ou com o momento presente, Bel?
Sei lá, Francis. Mas é provável que Kháyyám tenha considerado o momento, digamos, cada tijolo que se coloca ligado a outro numa construção. Como se sentenciasse que renegamos o presente se ficarmos olhando indefinidamente para o futuro. Raciocínio demais simplista como vê, mas nessa posição, contemplativa, de vaga esperança, pode nem haver futuro, não acha?
Posição que, de certa forma, dona Almira assumiu por algum tempo, não digo você, Bel, em relação a mim, os olhos fitos num bom futuro para você.
Águas passadas, aceita a interpretação de Omar da parte de Isabel. E com o adendo de haver um rubai em que o poeta persa incita: Toma as rédeas ao teu corcel, pára e surpreende o minuto de alegria.
Bel com razão. Omar Kháyyám bem mais que um filósofo de adega. E ela não muito chegada a vinhos.

Tijolo por tijolo, a irem construindo. Sem que se preocupassem em concluir. Cada tijolo simplesmente acontecendo. Duas crianças que brincassem de edificar; depois... para suas casas.
Isabel sai muito cedo levando a chave para acordá-lo no apartamento - pé ante pé para o quarto dele; dona Almira a engolir porque viúva e porque Bel tem idade, tem experiência de viagem e seria pior se saísse com mais de um. Em todo caso, dona Almira junta as palmas agradecida: ela dorme em casa. Fazia-lhe companhia. Com Francis, somente os domingos escureciam. E sem que ficasse para dormir.

Bel acendera a luz do banheiro, riu ao examinar no espelho as axilas, apanha o barbeador.
Falta menos de um mês para eu voltar a trabalhar, isso se você não se opõe, e sabe, Francis, que eles concordaram em aproveitar-me na recepção? Eu já devia ter-lhe dito, para ver se estava de acordo.

Contanto que não volte a trabalhar a bordo - ele pens0u.
.
Voar, esteja tranquilo, apenas como passageira e a seu lado. Que tal uma viagem de novo ao México, sem aquele compromisso, como da outra vez, de voltar para bordo já no dia imediato?

(A fim de agradecerem à Virgem)

Há pouco eu me lembrava, Francis, o que me fez rir, de uma funcionária nos Estados Unidos que a se depilar para permanecer no emprego preferiu perdê-lo, porque aí teria o direito de cultivar os seus pelinhos. Logo algumas socialites, reunidas no Clube dos Charutos; em suas reuniões só fumavam habanos; passaram à frente a idéia de ação afrodisíaca dos pelinhos à camponesa. O que me diz?
Não havia pensado nisso. Apenas, e fora há um bocado de tempo, quando procurava entrar em jornal, ouviu de um editor do Diário de Notícias, do Rio, cercado de fotos de mulheres sobre sua mesa (Segismundo! já escolheu? - o diagramador do DN, impaciente) que mulher com buço tem algo mais para atrair o homem. Ora, se buço de mulher atrai, Francis conjectura, não tendo sido bem assim que saciou a curiosidade de Bel, pelada no rosto, os fiozinhos das axilas devem também estimular.
É que você hoje ficou alisando os meus, e notei um quê de satisfação em seus olhos.
Isabel hesitava em usar o barbeador, faltando ainda quase um mês para apresentar-se no aeroporto. Ele o toma dela, o repõe no lugar, desprende-lhe o sutiã, que cai, os braços de Bel por cima de seus ombros, acaba de despi-la, e se beijam; o banho juntos.
O jantar fora, vinho... nos rubais de Kháyyám, uma ânfora de vinho, de vida eterna, porque as tulipas murchas não reflorescem mais. E Bel um instante no telefone com dona Almira, uma ânfora de viuvez, a avisar-lhe que não se demorava.
Bel em casa, Francis vai se deitar com o pensamento nos pelinhos à camponesa e o efeito é que sonha com o buço de Luísa.

A caminho do ministério e, mais tarde, do jornal, o pêlo de Isabel e não o buço com que sonhara. O furacão Belle a 80 quilômetros a sudoeste de Atlantic City, New Jersey, e a polícia mexicana no encalço da mulher e do secretário de um dos traficantes de drogas mais importantes do mundo. Segundo a AFP, tinham se dirigido para o norte do México levando mais de 50 quilos de cocaína, carregamento avaliado, por baixo, em 150 milhões de pesos (12 milhões de dólares, na época). Constava nas estatísticas mexicanas que aquele traficante já conseguira introduzir nos Estados Unidos quantidade superior a uma tonelada de cocaína.
Amapola, amapola, como puedes tu vivir... tan sola. O pêlo. Fechada a página que lhe cabia no jornal, sem telegrama que merecesse ir para a coleção, Francis volta para sua mesa. Põe papel na máquina, bate:


- Se eu fosse deputada, sabe, meu primeiro ato seria congratular-me com a americana que a se depilar para poder continuar no emprego preferiu perdê-lo, conservando cada pelinho do corpo. A começar pelas pernas.
- E por isso foi despedida, não foi assim!? - Carlinda nem sempre acredita mas interessa-se por tudo o que Io lhe diz.
- Foi como saiu no jornal. O chefe dela não lhe deixou meio-termo, ou se raspava... ou rua!
Io com o braço estirado para

D’Artagnan! você que foi botânico em outra encarnação, dê aí o nome de uma planta ornamental da altura ou quase de uma pessoa, serve mesmo suspensa.

Samambaia-chorona.

Uma planta alegre, d’Artagnan, e que não ocupe tanto espaço.

O antúrio, que anima moça a se casar e consola mulher separada.

o antúrio na varanda - ereto, o pêlo aparecendo, liso do suor, inibe Carlinda, que evita olhar mais. E baixa os olhos para a rua a fim de recompor-se, porém o trânsito, do alto, é brinquedo, mais uma peça de Io. Volta-se para ela:
- Então acha, Io... Ah, deixe pra lá.
- Fale, garota. É o pelinho?
- É.
- Pois se quer sacar o que vai pela minha inteligência... asseguro-lhe que funciona.
Carlinda enrubesce:
- Você não presta mesmo... - e reprime o gracejo, assumindo um arzinho de seriedade.-- Mudemos de assunto.
-Nada disso! - Io reage como

Uma criança excepcional, não. Mais ou menos isso, não bem isso. Francis afasta os pelinhos um por um dentro da cabeça à procura da palavra exata. A usada pelo general João Bina Machado em palestra na UERJ, antes de chegar o besouro eletrônico, ao sustentar que os jovens de inteligência acima do normal são desajustados e transformam-se em subversivos se não tiverem tratamento especial. Vejamos no Aurélio: Excentricidade. Excêntrico. Excepcional. Adj. 2g. 1.Em que há, ou que constitui ou envolve exceção: lei excepcional. 2.Que goza de exceção; privilegiado: Na firma, dirigida pelo tio, ocupa um cargo excepcional. 3.Excêntrico, extravagante. 4.Excelente, extraordinário... Extraordinário, o prefixo é extra, que corresponde, de certo modo, a super. Vejamos em Super- (Do lat. super) Pref.- ‘excesso’, ‘aumento’; ‘posição acima, em cima ou por cima’; ‘superioridade’, ‘em seguida’: superdotado. Aurélio! (Aurélio soa como Eureka).

Uma criança superdotada, para não dizer excepcional.- Tive uma idéia!
E vão as duas, Carlinda levada pelo braço para o divã que Io, sempre que acometida de uma idéia extravagante, diz ter herdado de Sigmund Freud. Io soleniza:
- Imaginemos uma república grupal. Não de dinos.
- Do quê?
- Dinossauros, garota! Mas uma república sem babados ideológicos, dogmáticos e adjacências. Demodê, é isso, demodê.- Infla-se e se deixa esvaziar aos poucos. - Toma um Alain Delon?
- Um...?
- Um licor que fiz. Dei-lhe o nome de Alain Delon. É de genipapo, com uma restiazinha de vinho francês. Espere-me.
Io vai à copa e Carlinda tenta idear uma república grupal. Piada; acomoda-se no divã e esbarra com a mão num livro todo molengo respingado de sabe-se-lá-o-quê: O Morro dos Ventos Uivantes. Sorri pendulando a cabeça. “Essa Io...”.
- Este romance eu achei na lixeira.- Io traz o licor. - E sabe que é bem interessante? Estou na metade.
- Vi o filme. Não tenho saco pra encarar livro grossão. Li há dias um livrinho de Oswald de Andrade, umas trinta páginas, um teatro muito louco e que me levou até o final.
- Qual?
- A Morta.
- Cruzes! Experimente agora o meu Alain Delon.
- À nossa saúde.
- Brindemos também à nossa república.
- Está bem. À nossa república! Embora eu não tenha a mínima de como possa ser.
Para começo de entendimento, Io esclarece que uma república grupal seria espécie de clube fechado, enquanto em organização e para treinamento de cada membro a fim de resistir lá fora aos vícios da sociedade de consumo. E de encará-la, com o tempo, em pé de igualdade, observando sempre que possível o princípio da coexistência pacífica.
- Um clube somente de mulheres - Io acrescenta - de preferência, jovens. Poderíamos até estabelecer como limite máximo de idade trinta anos; o que acha?
- Está falando sério, Io?
- Nunca falei tão sério, cara.
- É que não saquei ainda o espírito desse seu clube.
E Io ao sabor da imaginação:
- De nosso clube, da nossa república, que estamos fundando neste momento, entende? Com um código de comportamento pelo qual cada camponesa, assim nos qualificaremos, se obrigará a não depilar-se, a não tirar um fiozinho sequer das sobrancelhas, das axilas, das pernas, de qualquer parte do corpo.
- Nem... um pentelhinho?
- Nem. E mais: a não usar desodorante nem cosméticos.
- Nem desodorante? Não vê que está sendo para lá de radical? E o c.c.?
- No tempo de Cleópatra por acaso havia dessas caretices?
- Mas ela, a dona Cleópatra, com toda certeza perfumava-se.
- Não com essa frascaria de essências que andam oferecendo por aí às pequeno-burguesas.
- Você vai acabar instituindo o banho francês, o que tomam uma vez por semana, e num país tropical... já pensou? E proibindo também a gente de ir ao cabeleireiro.
- Está redondamente enganada. O banho será obrigatório todos os dias. Do cabelo, logicamente, teremos de cuidar, tanto quanto do corpo, à maneira a bem dizer camponesa. Ambos se completam, e o cabelo será o símbolo de nossa república.
- Você fala... o cabelinho.
- Sacou. O pelinho à camponesa, ou seja - Io mostra como:- saindo assim do lado de uma alça à antiga.
- E todas teremos de usar combinação?
- Combinação, cara! - e chegando-se ao ouvido de Carlinda:- Para o suspense.

Francis vê no relógio que é tarde, tira o papel da máquina, Pascal lera as duas primeiras laudas e apanha a outra, Francis justifica seu cometimento literário como um relax do jornalista. Pascal nem deve ter ouvido, pareceu-lhe, mergulhado na desfiadura, a salivar a cada linha - até onde Io revela a Carlinda a finalidade da combinação; continua amanhã?

Nessa noite, o quarto exposto à claridade da rua a fim de acordar antes de Bel entrar pela ponta dos pés para ir soprar em seu ouvido; Francis acostumara-se ao sopro de Bel. Ela de volta ao trabalho teria ele que se libertar dessa dependência, e como o irritava o trinitar de um despertador!
Cristina, por sua ordem, desde o tempo de Luísa, só depois do meio-dia. Para cuidar do apartamento dele e preparar o que comer de noite, comida leve, o almoço - de pensão. E não pretendia alterar este seu hábito, ainda que lhe fosse cômodo a empregada chamá-lo.
A persiana a meia-janela, o vento a roçar pelas dobras, ele sonha desovamento do besouro.
S.PAULO (AE) - O CONJUNTO VOCAL “AS CAMPONESAS” APRESENTOU-SE HOJE EM SÃO PAULO PELA PRIMEIRA VEZ, JÁ COM FAN-CLUBE ORGANIZADO E PROVOCANDO REACOES DIVERSAS NOS LARES DA CIDADE. DURANTE O SHOW, QUE FOI TELEVISADO APESAR DOS PROTESTOS DE GRUPOS ISOLADOS DE SENHORAS DA SOCIEDADE, OS TELEFONES NÃO PARARAM DE TOCAR NA EMISSORA. AS VOZES SE DIVIDIAM EM CADA CASA, GERALMENTE DA MULHER INDIGNADA COM O QUE ASSISTIA E DO HOMEM, A INTERFERIR, ATEH QUE GOSTANDO... TAMBEM O FAN-CLUBE USAVA COMBINACAO COMO ROUPA DE CIMA, DIFERINDO ENTRETANTO DAS CAMPONESAS PROPRIAMENTE NO POMO DESSE MOVIMENTO FEMINISTA: O PELO DAS AXILAS NÃO CRESCERA O BASTANTE PARA APARECER NO VIDEO, POR MAIS QUE AS FANS ERGUESSEM OS BRACOS.

Combinação como roupa de cima, engraçado; o inverso do que imaginara. Reconstituído primeiro à caneta o telegrama do sonho; à máquina, o risco de pane na memória, pelo barulho das teclas. Francis já o guardava para o conto dos pelinhos, e a sua banda a figura de Io, de Bel encantada; nem acordado pelo sopro do vento a vira chegar.
Além do que sonhara, inútil querer obstar a curiosidade feminina, mostra-lhe o princípio da história; relax do jornalista, como se justificara a Pascal. Bel sorrindo grandiosa, por pouco as ameixas não lhe saltaram das órbitas. Por ter descoberto a pólvora. Ou então comprovado a descoberta, a reconhecê-la como da americana que entre o pêlo e o emprego optara pela reserva natural do corpo. Por que razão ao certo nunca se soube. Ante a dúvida, a Bel os louros do achado. Ao menos entre as paredes de um quarto de amar.
Pelo visto, Francis, terei de conservar meus cabelinhos. Não será tão difícil, sabe?, pela blusa que deverei usar no aeroporto. Ainda que decotada, posso dar um jeitinho bem brasileiro de ocultá-los, de guardar para você. O meu segredo, sô!
Um corredor de pólvora, o que Francis receia, a terminar desvendado o segredo de Bel e riscasse ela um fósforo para uma demonstração. Mas, pelo cuidado de recatar-se, o contrário seria dublar a americana, e aí é que Bel diferençava-se de Io. Existisse de fato Io, camponesa ostensiva e beirando a ativista, porque com o agravamento de pretender uma república grupal, logo lhe atribuiriam o q.i. de superdotada. Por planejar subverter a ordem das coisas, posto que coisas como perfumes, cremes, instrumentos de pinçar e debuxar supercílios, a escovinha dos cílios, a sombra de olhos para cada evento e hora, ah! o depilador ou à falta dele o barbeador, já tão unissex como camisa de homem e social. Tudo isso mais o desodorante nos aromas vários, do limão ao floral.

Entronizada é que Io não seria. Alguma vez imaginou, Bel, um baque no mercado de beleza?
Procura controlar-se ruminando o provérbio da andorinha. E a clarividência do general Bina Machado, que localizara no superdotado um elemento perigoso quando não tratado como excepcional, por ser contestador e não se subordinar à ordem constituída.
Entretanto, a experiência com Bel acaba convencendo-o de que custava abrir um hífen para Io exclamar “que barato”? Io se restringindo à hipótese de uma queda no negócio de supérfluos. Decerto
Foi o que aconteceu no conto de Francis. As andorinhas já fazendo o verão, conforme o provérbio pelo qual uma apenas não faria. Um ministro-nos-acuda entre os fornecedores e revendedores de produtos de beleza e entre os dependentes deles “para o exercício honrado” de sua atividade -- se lia em memorial dirigido às autoridades por iniciativa justamente da classe dos cabeleireiros e assemelhados, a mais excitada, a ponto de haver requerido autorização para uma passeata, que a polícia não deu; metidos todos num mesmo barco e à deriva. Ao ministro da Fazenda pedem incentivos fiscais, a começar pela retirada dos cremes de pele, “e de outras conquistas da ciência para a higiene individual e a preservação dos valores plásticos mais caros à mulher”, do rol de artigos supérfluos. Ao ministro da Justiça, o fechamento sumário do gineceu das camponesas, como passara a ser conhecida a república grupal de Io, que denunciavam, no memorial, como “foco de toda a subversão da ordem social nas cidades (outrora) mais civilizadas do país”.
Francis a se divertir com seus duendes e Pascal salivando. Mas os duendes das noites de Francis, a essa altura do enovelamento, iam-lhe fugindo ao controle, o que o preocupava bastante, por Io, parecida com Bel nas feições. Em tempo de bombas não juninas e sem indícios de que qualquer dos signatários do memorial tivesse pendores para extremismos, da direita ou da esquerda, ainda assim Francis não excluía a possibilidade, embora remota, de que um daqueles petardos viesse a ser colocado no gineceu. Querendo muito a Io, apesar do seu q.i., tanto quanto a Bel - um cofre de aprazer. Um cofre cujo segredo somente a ele, Francis, dera a conhecer.

O ar cheirava a bombas, e posto que bombas de intimidar, até então com prévio aviso de detonação, hora e lugar, Francis remoendo a sorte das vendedoras ambulantes de cremes e perfumes, umas heroínas na luta pela sobrevivência; o que seria delas a prosseguir a história?

De repente... a realidade. Lavrado no livro de ocorrências da polícia da cidade de Resende num domingo da reta-do-açougue da estrada Rio-São Paulo:
...faleceram, no local, entre as ferragens do auto-passeio, o motorista do mesmo e seu acompanhante, doutor Juscelino Kubitschek de Oliveira, brasileiro...

Lavre-se também que d’Artagnan, noite seguinte à do sepultamento, entra na redação comentando que sua mulher lhe contara que a filha, colada à tevê, perguntou por que, minha mãe, o povo canta na morte de um presidente. E que outra explicação lhe daria a mãe senão porque fora aquele um presidente do povo.



Como pode o peixe vivo
viver fora d’água fria.
Como poderei viver,
como poderei viver
sem a tua sem a tua
sem a tua companhia...

O que o povo cantava. Lavre-se que cantavam. O que o presidente gostava de ouvir nas escolas que visitava.
Como se um mundo de gente tivesse se desmassificado, Francis refletindo, ao menos por um dia; sinal de que é possível desmassificar-se.
A resistir à própria noite que descera ao Campo da Esperança, cemitério de Brasília; o corpo insepulto até perto de zero hora. Para que ninguém do acompanhamento - umas cem mil pessoas - voltasse para casa sem ter-lhe tocado, ainda que na madeira. E sem que se deixasse de lado a informação que voara de Resende, contida num laudo pericial, de que o carro em que viajava o presidente (dirigido por quem lhe vinha servindo há muitos anos e sem o costume de cochilar ao volante) havia sido fechado por um misterioso veículo pesado.

Pascal tenta puxar da memória a marchinha carnavalesca sobre a Nova Capital, de um repórter de A Noite, que nem chegou a ser gravada mas que Ledo Ivo, também repórter na ocasião, gostava de ouvir: da boca do autor. Lembra-se?
Ora, se...! - Francis anima-se..- Só me falha o nome do repórter, um jovem que costumava descer ao bar do Zica acompanhando boêmios já coroas como Leal de Sousa, amigo de Blecaute: o general da banda; Ruy Vianna, marido da radioatriz Ítala Ferreira e que além de redator de A Noite o era, ainda, da Rádio Nacional, e o romancista Lúcio Cardoso. Lúcio a enxugar uma garrafa de vinho com inusitada sobriedade. Os demais ficavam nas rodas de chope. Ruy Vianna, quase sempre, a bancar as despesas.
Petronilha Pimentel...
Ela não nos acompanhava nas chopadas, Pascal.
É outro lance; eu soube que ela parecia cair pelo Lúcio, ouvia-se que tinha uma queda columbina pelo Lúcio.
Recordo-me dela, Pascal, como grande jornalista, Rainha da Petrobras, eleita pelos funcionários da estatal. Sou testemunha de que frente a frente com o Lúcio ela se derramava em elogios a seus olhos, que dizia serem sensuais.Talvez o fizesse por admiração a seu talento e porte de escritor e como pessoa humana, estando ela sempre de bem com a vida. Um dos maiores ficcionistas contemporâneos em língua portuguesa, introdutor, ou um dos introdutores, do romance psicológico no Brasil, Lúcio Cardoso estava ainda na metade da Crônica da Casa Assassinada, que dactilografava já para a impressão, a cada capítulo, na redação de A Noite, e o editor José Olympio se dispõe a fazer-lhe um adiantamento para cobrir as despesas de decoração de sua casa.
Pascal demonstra vivo interesse em saber mais sobre Lúcio Cardoso; era pauteiro no Diário Carioca, que ficava a poucos passos da Praça Mauá, do Edifício de A Noite, mas raramente se viam.
E Francis espicha: - Um desses apartamentos tipo casa, bem antigo e dizia-se rua afora que mal- assombrado. Tal fama, contou-me um dia Lúcio Cardoso, afugentava pessoas à procura de um teto; algumas nem entravam, já informadas nas vizinhanças sobre a “estranha moradia”. Por isso, o proprietário foi baixando o aluguel, foi baixando... sem considerar que alguém pudesse, em algum momento, interessar-se por ela justamente por ser mal-assombrada. E o corajoso inquilino se pôs a escrever ali a sua Crônica da Casa Assassinada.
A marchinha do jovem repórter, esqueceu?
Do nome dele ainda vou me lembrar; já a marchinha... Pascal cantarola:

Você quer paz
e água fresca
então vá para Goiás.
(Já vou; pam-pam-pam-pam)
Você quer paz
e água fresca
então vá para Goiás.

Já reuni todo o meu pessoal,
vamos embora para a nova capital:
papai, mamãe, a mulher e até vovô.
Porque já deu formiga na cama do Nonô.

Hoje, observa Pascal, quando alguém se refere a Juscelino Kubitschek geralmente abrevia para JK, mal sabendo que Nonô era um apelido carinhoso do presidente, muito difundido naqueles dias.
Brasília o guarde, pensou o secretário da noite, a seu criador, porque cidade eternizada. Chega-se a acreditar em ressurreição, o que é bom: desintoxica.


AFP-070
KUBITSCHEK
BOGOTA, 24 AGOSTO (AFP) - O EX-PRESIDENTE BRASILEIRO JUSCELINO KUBITSCHEK DESAPARECEU SEM MANCHAR A DEMOCRACIA OU A LIBERDADE, COMENTOU HOJE O MATUTINO LIBERAL “EL TIEMPO”.
O JORNAL DEDICA UMA NOTA DESTACADA EM SUA SESSÃO EDITORIAL AO EX-MANDATARIO BRASILEIRO, FALECIDO TRAGICAMENTE DOMINGO ULTIMO EM SEU PAIS.
A NOTA LEMBRA QUE UMA DE SUAS IDEIAS COMO CHEFE DE ESTADO “A OPERAÇÃO PAN-AMERICANA, ORIGINOU A ALIANCA PARA O PROGRESSO, QUE FOI IMPULSIONADA PELO FALECIDO PRESIDENTE JOHN KENNEDY.
“A DITADURA

Sinto muito, Pascal, mas o reconhecimento em JK de um presidente que arregaçou as mangas para construir Brasília em tempo recorde, um feito sem dúvida alguma extraordinário, não impede que se encare a Operação Pan-Americana, por ele lançada em junho de 1958, com certa reserva e espírito crítico. Uma operação dessa, meu caro, o que mais seria senão vertente do velho, caquético panamericanismo!
Pascal só ouve.
Reagan, o caubói que alcançou o estrelato presidencial, apregoava insistentemente a União das Américas: divisa de altas cavalarias do seu governo. A base doutrinária dessa união era, e continua sendo, o panamericanismo. Idéia do secretário de Estado James Blaine, parida no século dezenove e inspirada na doutrina Monroe, de 1823: A América para os americanos! A do Norte, a Central mais o Caribe, e a do Sul. Blaine, praticamente, popularizou essa doutrina com o nome de panamericanismo. E sabe que foi um influente crítico literário brasileiro, José Veríssimo, quem reagiu por nós à onda panamericanista, com aquela sua língua afiadíssima? Para não dizer... com a pena de pé! Veríssimo escrevia então que o panamericanismo entrara na América Latina, abre aspas, “em puro proveito dos Estados Unidos da América”, fecha.
E como, então, ficaria o nosso JK nessa história? - Pascal à espreita, e Francis acha que infelizmente o Nonô acabou fazendo uma opção que Oscar Niemeyer, o arquiteto de Brasília, jamais faria.
Um dos arquitetos, Francis. Não se esqueça do Lucio Costa, autor do Plano Piloto da Nova Capital, e do coronel Ernesto Silva, presidente da Comissão de Localização e Mudança da Capital Federal. Boa lembrança; corrija-se. Acontece a Revolução Cubana, em 1959. E John Kennedy aproveita a Operação Panamericana de Kubitscheck para dar corpo ao programa Aliança para o Progresso.
Que acabou em fiasco -- Pascal reconhece.
É.


Francis! -- grita d’Artagnan.


(Será Bel? Deve ser. Hora dela fonar e direi que a amo).

-- Alô.
-- Francis...!
- Então!
- Tudo certo, estive no aeroporto. Quase passei no ministério, acabei desistindo.
- Por quê?
- Porque naquela sua seção, querido, uns ficam olhando com cara de bicho do mato e outros com cara de que a gente é contrabando.
- Bel, alguma vez lhe confidenciei...
(Bobagem)

- Que é casado?
- Não.
- E que fosse, amor, tão reticente hoje, não faria mais sentido. Algo a ver com minha volta ao trabalho? Já lhe falei que agora será diferente, que não irei voar, a não ser a passeio e com você.
- Nada disso, Bel.
- Então, o quê? Está bem? Diga-me o que se passa...
- Alguma vez lhe disse pelo telefone que a amava?
- Pelo telefone, nunca.
- Está dito.

Curioso do jeito como se fica depois de uma comoção nacional, estranhamente leve, uma leveza por insegurança -- idiossincrasia? Esclerose já? -- ou de vazio interior, e consciente estava, pelo menos era como se sentia, de que, em seu caso, não havia mais motivo para continuar assim. Tivera a voz de Isabel pelo fio ainda há pouco e lhe teria o hálito pela manhã. Do modo de ver existencial, a própria origem de suas últimas emoções não justificava devesse apoiar-se em Bel a cada instante da vida, a vida no geral, declivada por atentados e por acidentes, inclusive acidentes suspeitos na história pátria; mas é que fora da cama, ultimamente, vivia nauseado. Por ser talvez de outra geração... Não. Os jornalistas, quase todos iguais, poucas e desonrosas exceções, não havendo distinção, na gema do pensamento, entre cobras e focas. Isto é, entre veteranos e novatos. Sempre incomodam àqueles que dominam. Houve quem os definisse, muito sutilmente, isentando-os de culpa pela disseminação de notícias prurientes, como espécie de mosquitos transmissores da malária; sutileza pós-civilista, Pascal, e boa noite.
Pascal tentou retê-lo, pergunta pela história dos pelinhos.
Esqueça. Francis imagina-se um pombo e vai se recolher, casados os vidros da janela e descida a persiana em esteira. Necessitava do sopro de Isabel. Nem sempre o vento sopra e às vezes sopra com chuva, porém decorridos mais uns dias, Bel saindo cedo diretamente para o trabalho, haveria de encontrar um meio de acordar sem ela. Fosse com um despertador, que não soasse estridente.
Amanhece e ele se surpreende por ouvi-la entrar; finge que dorme, o ouvido na posição de receber-lhe o sopro. Bel no quarto, ele imóvel a esperar. Algo ela faz, que provavelmente habituara-se a fazer antes de se inclinar para acordá-lo: ajeitava o cabelo ou simplesmente se olhava no espelho. Mais que isso, a demora indicava; pelo ruído, teria tirado os sapatos. Abrisse um olho... Não foi preciso, porque já a sentia colar o corpo ao dele, nua, quando desperta, e todo, para ela.

Não se soube mais de Io e suas companheiras de gineceu. Salvo a peça de Oswald de Andrade, A Morta, que aparecera momentaneamente na historinha da “república grupal” à conta de uma nota crítica de Francis baixada à oficina para a página literária do caderno de domingo.

Uma releitura de Oswald

A Morta, peça em 1 ato de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro, Serviço Nacional de Teatro, 1973. Coleção Dramaturgia Brasileira. 31 p.

Em A Morta, Beatriz é um “trecho noturno” da vida do Poeta, que assim a vê agora, mas sem ele se convence de que lhe falta o “apoio terreno”. E implora ao Poeta: “Permanece para sempre dentro de mim! Sê fiel!”.
Mais que singela “mensagem sexual” de Beatriz, como ele se insinua ou imagina, o Poeta representa para ela o “feto humano que voltou à eternidade”. A fim de “mudar o mundo”, na voz de um cremador, ou “conservar as instituições”, na do enigmático Hierofante, que não seria um X-9 aprimorado? Cabe a escolha ao Poeta na condição assumida - “Sou a classe média” -, mesmo sendo o Hierofante professor de jiu-jitsu de Beatriz e o urubu de Edgard uma versão sincrética do corvo de Poe.
A uma releitura da peça de Oswald de Andrade, Beatriz - “Estás deformada, longínqua, inexata”, constata o Poeta - passa a chamar-se entre nós, das galerias, Democracia. Dentro do “plenário do circo” que plutocratas armaram em terrenos do Estado nacional com o agravante de que se penduraram anos a reio nas suas tetas.
Beatriz, ou seja a Democracia, posicionara-se entre os manifestantes por mudança geral e a “charanga dos conservadores de cadáver”, regida pelo Hierofante no “país oficial de Freud”, expressão dele mesmo, e que afinal a arrebata após haver ela tentado inutilmente - tão desprezada e por vezes reprimida quanto desfigurada, porém frágil, na verdadeira estrutura, qual um copo de cristal - atrair o Poeta para o lado erótico de um “necrotério lavado”.
Curioso é que o Juiz, que entra em cena no 2° quadro (No País da Gramática) bate o martelo em favor dos conservadores, garantindo-lhes as rédeas do poder. Em termos, na avaliação, feita pelo Poeta, da sentença berrada pelo magistrado, de tal modo pronunciada que Beatriz se sente no dever de seguir passivamente o cortejo dos mantenedores do statu quo: “O Juiz é um morto também”.
Mortos, pela ordem de entrada, ou melhor, de animação dos personagens centrais, a Outra (o alter ego), o Poeta (a “raiz dialética” do ser de Beatriz), Beatriz, aquela que “respirou o cheiro perigoso da liberdade”, segundo o Poeta, e agora grita por socorro, e o Hierofante: “Ninguém te ouvirá no país do indivíduo”.
Entenda-se aqui por “país do indivíduo” a aldeia global na visão de Marshall McLuhan e de que a mídia da plutocracia se serviu na esperança de que um dia o urubu de Edgard, a ave do paraíso americano, haveria que firmar o atestado de óbito da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e pousar a tempo, antes do rescaldo, sobre os escombros do Muro de Berlim.
Esclareça-se que o urubu de Edgard é o esculápio da peça em questão, na qual uma enfermeira sonâmbula, que como tal e na ausência física do Polícia Poliglota e do Juiz, ambos falecidos, nem a julgamento deve ir - inclusive à falta de testemunhas, tanto mais porque a platéia não é idiota, cai fora, bastando as notificações da agiotagem - é o “único ser em ação viva” desse teatro impregnado de éteres e clorofórmio.

Entre ficção e realidade, Francis decidira ater-se ao cultivo doméstico de pelinhos, respaldado - termo muito em voga nos meios políticos de então - no princípio universal da inviolabilidade do lar. E do pensamento.
Do pensamento sim, Pascal. Também o pensamento é inviolável; vai ver, mais que o próprio lar. Pode-se pensar no que quiser, ainda que com esparadrapo na boca e maniatado.
Para Pascal, nada disso vinha ao caso. Ele não se conformava era com a história das camponesas inacabada, mal comparando-a à Vênus de Milo.
Não diga, Pascal, que você é desses que só faltam levar a fita métrica para tomar as medidas das coxas, dos quadris e do busto de uma mulher para sair com ela. Já eu, não escondo, sou um pouco baudelairiano. Ou um pouco Di, para ser mais preciso.
Ou o quê, meu irmão?!
Di, Pascal; associe. Refiro-me às mulatas do Di Cavalcanti.
Prefiro as do Sargentelli.
Pois bem, acho que a beleza feminina, beleza exterior, está nos contrastes do corpo.
Veja se entendi: Acha então que as misses teriam que enfrentar um tanque de roupa e o doutor Pitanguy, na melhor das hipóteses, teria de se dividir em cirurgião plástico e clínico geral para manter o estatus. É isso?
Beleza de miss não enche mais olhos, meu caro, entre os moços destes anos 70. Mas nem por isso me encorajo a prosseguir o conto do gineceu das camponesas. Algum dia, quem sabe; agora não.

Agora, falava-se muito em eleições, o que era bom sinal, se bem que as do Brasil, por serem municipais, não teriam a importância das realizadas nos Estados Unidos, que Jimmy Carter ganhara após uma campanha assentada numa fórmula aritmética singular. Fórmula assim desenrolada pela AFP na ocasião:
“Um valor relativo, calculado a partir do número de votos obtido pelos democratas locais e dos resultados das apurações anteriores, foi estabelecido para cada Estado. Por outro lado, foi fixado um número que representa teoricamente o peso político do candidato, do seu companheiro de chapa, de seus principais colaboradores e de personalidades do Partido Democrata. A visita de Carter a um Estado vale sete pontos, a do senador Walter Mondale cinco, a da mulher de Carter três e a de um filho dois pontos. Desta forma, se Nebraska vale 22 pontos, Carter poderá, por exemplo, fazer lá uma visita (sete pontos), Mondale duas visitas (dez pontos) e a senhora Carter e um filho uma (cinco pontos)”.
A AFP rematava a explicação da fórmula carteana com a observação de que nenhuma comunidade étnica ou religiosa, nenhuma cidade ou nenhum sindicato seria deixado ao acaso ou receberia uma atenção excessiva em tempo e dinheiro.
A fórmula brasileira é bem mais prática, e generosa, Francis com os seus botões. O besouro em pane, o telegrama chega via Embratel.



CCCCCCCCCCC
(CG)
DENTADURAS
043/FORTALEZA, 011 (AE) - AS ULTIMAS 500 DENTADURAS MANDADAS CONFECCIONAR POR UMA DAS DUAS ARENAS DE JUAZEIRO DO NORTE - A APOIADA PELA FAMILIA BEZERRA -- DAS TRES MIL CONTRATADAS, SERAO DISTRIBUIDAS A PARTIR DE AMANHAN AOS ELEITORES DO MEDICO AYLTON GOMES, CANDIDATO DO GOVERNADOR ADAUTO BEZERRA A PREFEITURA LOCAL. HOJE, EM FORTALEZA, OS PROTETICOS TIVERAM UM DIA DE MUITO SERVIÇO: TINHAM QUE ENTREGAR A ENCOMENDA DE QUALQUER MANEIRA SOB PENA DE NÃO RECEBER SEUS PAGAMENTOS. UM PROTETICO, CUJO NOME PEDIU PARA NÃO SER REVELADO, CONFESSOU TER FICADO COM OS PUNHOS DOLORIDOS DE TANTO PREPARAR DENTADURAS. OUTRO ALEGOU QUE, “APESAR DE TERMOS COBRADO 110 CRUZEIROS CADA, ELES (OS CONTRATANTES) SO PAGARAM OITENTA, O QUE ACEITAMOS POR CAUSA DO VOLUME ENCOMENDADO”.
ENTRE OS EMEDEBISTAS,

-- Para mim?

PARA OS CORRELIGIONARIOS DO DEPUTADO FEDERAL MAURO SAMPAIO, PRINCIPAL ADVERSARIO POLITICO DOS BEZERRA, “NOS QUASE 15 MILHOES DE CRUZEIROS QUE O GOVERNO ESTA INVESTINDO NO MUNICIPIO, ESTAO INCLUIDAS AS DESPESAS COM AS DENTADURAS”.

Alô... É ele. Não. Logo vi que era você, o tempo não deu pra esquecer e mesmo eu não chegaria a esse ponto. De fato, estranhei um pouco por não ter encontrado o livro com Beatriz, mas não faz mal. É, ela explicou-me tudo, que sua amiga o levara sem deixar endereço. Que amiga, hein; estou brincando. Sei. Ela morava com uma outra e estava para se mudar, acabou viajando, enfim apareceu com Os Possuídos. Não precisava você ter-se dado ao trabalho de correr livrarias, Luísa, a edição esgotada. Han. Tese de mestrado, é? Interessante. Não, não cheguei a fazer o ensaio que pretendia. Bem, o ideal seria ela procurar falar diretamente com o Gipson de Freitas, que é o pai da criança. Em Niterói, sim. Morava na rua Visconde de Sepetiba. É, não mora mais. Lá não deixou o novo endereço, fez como sua amiga. Han, não sou propriamente um estudioso do parvinismo, mas posso dar a ela umas dicas. Sim Luísa, pode colocá-la em contacto comigo; um beijo.

Desligou rápido a fim de não dar tempo a Luísa para retrucar, como daquela vez, que guardasse o beijo para Isabel. E lembrando-se de uma anedocta de galinhas, que d’Artagnan contara ao chegar (depois da do coral de mudos), pôs papel na máquina, bate:

- Sabe de que morreu meu pintinho?
- De que foi?
- De omelete, Mariinha.
- E não há cura para isso?
- Com a carne de vaca pela hora do Brasil... Foi tempo, minha filha, que se via vaca até em livraria.
- Mesmo!?
- E uma vaca parvinista, Mariinha.
- Conte-me isso direitinho.
- Ué, não soube? Pois vou lhe contar. O escritor Gipson de Freitas, seu pai já deve ter ouvido falar nele porque quem o cria, aquele pintor que você conhece, fez parte do movimento de vanguarda que surgiu com o nome de parvinismo e que tinha justamente o Gipson de Freitas como papa, e aí o Gipson escreveu um livro, Os Possuídos, até que conseguiu editora, a Freitas Bastos. E o lançamento, pelo que ouvi na casa do pintor...
- Você esteve lá?!
- Na livraria?
- Não! Na casa do pintor.
- Por uns dias. Mas o lançamento, Mariinha, é como se diz agora, foi um barato. Segundo o pintor, Gipson de Freitas levou uma vaca e, como era natural, foi logo juntando gente.
- Imagino.
-Sei que todo mundo que foi lá prestigiar o autor saiu com Os Possuídos debaixo do braço.
- Não ficou um livro!
- Saiu que nem leite, minha filha. O sucesso foi tal que houve quem pedisse o autógrafo da vaca.
- E ela deu?
- Assim seria demais, Mariinha!

Francis se vai pela noite com a vaca parvinista no goto, quase mordendo-se para não rir, para evitar que alguém duvidasse da sua sanidade. CAVALHEIROS: empurra a porta. Uma vaca parvinista ah-ah-ah-ah-ah. Agora ninguém para imaginá-lo pirado.
Deixa o sanitário (lá estava escrito: Não adianta sacudir que o último pingo é da cueca, da cueca do próprio filósofo, inclusive) pensando seriamente no parvinismo - é duro admitir seja hoje ignorado como movimento ou manifestação ou evento de vanguarda de uma época, os anos 50. Ou será, Francis toma uma birita, porque Gipson de Freitas não entrou para o clã dos macacos! Macacos de macaquear, imitar, de copiar, de importar fórmulas, propostas, ideias de outros clãs, de outras tribos. De apresentá-las às vezes como sendo suas, o que é pior. De lado esses macacos, vamos admitir o joio separado do trigo, discutiu-se o parvinismo. É quanto basta para o reconhecerem hoje como facto histórico das artes no Brasil, pelo menos no Brasil. Na Biblioteca Nacional montaram uma exposição denominada Movimentos de Vanguarda na Europa e Modernismo Brasileiro, Francis toma outra birita, e nenhuma menção ao parvinismo. A exposição começava com Marinetti e seus seguidores se propondo glorificar a guerra, para eles a única higiene do mundo, o quê mais! Ah, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias, “que matam”, e o desprezo da mulher. O desprezo da mulher... Freud, que explica tanta coisa desse ramo, deve explicar também. A exposição transitou pelo expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo e foi parar na Semana de Arte Moderna de São Paulo. Ou de Paris? De São Paulo ou Paris? ...tanto faz. O parvinismo às traças, medo de se olharem por dentro; os macacos, meio mafiosos, se fecham em círculo. Mais uma birita - mil perdões, Bel!- e Francis pára um táxi.
El día que me quieras - o chofer ajusta o rádio - la rosa que engalana se vestirá de fiesta com su mejor color...
Para um inferninho qualquer.


JECA’S b o a t e

Fecha depressa a porta para juntar-se às caras opacificadas, retrato em autocontraste, e não causar constrangimentos; deviam, os responsáveis pela casa, era levar até à entrada essa transa de luzes para a penumbra, ao gosto de quem não quer se expor. Quem não quer procura lugar o mais afastado possível da pista de danças - ...love is you, you and me, love is knowing, we can be, love is free... - O que farei, e mergulhou no inferninho com o amor segundo John Lennon em hi-fi.
A decoração do Jeca’s num estilo sertanejo meio crepom. Ouvira falar que no início e no final de cada noite, somente a essas horas, rodavam algo da dupla Alvarenga & Ranchinho, que o mulherio acompanhava em uníssono. De certo modo como no Balalaika, cabaré suspenso em Copacabana ao tempo da Lapa no apogeu. No Balalaika a noite começava, e terminava, com a orquestra, não era disco, tocando o bolero que lhe emprestava o nome.
Vai beber o quê, cavalheiro? - uma loura com lanterninha.
Vem-lhe à cabeça uma garça e Francis pede gim com tônica, gelo picado e uma rodela de limão. Pena que garçonete; Angélica, como a chamavam; pena não era bem o termo porque ele não estava ali com a intenção de prostrar-se em hotel; fora tempo, agora tinha Bel e seus cabelinhos. Então, para quê? Ora, não enche, xinga-se por dentro e torna em pensamento ao Balalaika. O Balalaika, como aquele cabaré também suspenso, o Novo México, na Lapa, escurecia apenas na hora do show. Gozado, tempo em que ninguém ou pouca gente se escondia. O Novo México com um sombrero na entrada.
Tem cigarro, bem?
Han!? A primeira a se chegar. Aqui está, e ela se mostra no clarão do fósforo. Se eu não fumasse o que você diria? Sabidão ou doido, ela deve estar avaliando, de pé, um caso raro no Jeca’s, talvez de sabedoria, e na verdade... simplesmente não a tinham preparado para essa emergência.
Arriscou que diria que lhe pagasse uma carteira de cigarros. Com toda essa gente a fumar por aí? ele complica. Sujeito esquisito, pensou ela, e engrossa (dentro das normas da casa). Quer fazer hora comigo, bem? Não está a fim, está? Me desculpe, mas preciso batalhar.
(A garça traz o gim com tônica, sua lanterninha a clarear o copo, conforme Francis pedira, o gelo picado mais a rodela de limão).

Ah, obrigada pelo cigarro.

Precisava batalhar. E a ele ocorreu intuitivamente a batalha de Waterloo. Mas Napoleão vencera muitas. Napoleão, um higienista para Marinetti, o futurista. No Brasil, conheço apenas Marinete - no feminino, mulher de um só homem, mulher de ocasião e mulher de batalha. Conhecera uma Marinete de vários campos de batalha. Que escrevia diário. O seu diário parecia ficção, ela própria, pelas partes que concordara em mostrar-lhe, as menos comprometedoras, lhe disse, e assim fez, depois de algumas saídas com ele. Do Novo México foi batalhar no Balalaika, que também ficava num sobrado e tinha o mais soprado trombone de vara da noite carioca. Acabou entrando para o bar do Zica, na Praça Mauá, de longo curso. O bar das zica’s girls, onde trocava-se dólar por moeda local, lá Marinete aprendeu inglês, somente a falar, e por força de expressão, com cada marine desembarcado para as noites do Rio.

Tem cigarro, bem?
Han!? A segunda a se chegar. Aqui está, ela no clarão; você se chama Marinete? Marinete?! pode ser. Já sentada e avançando, me chamo Celminha. As minhas colegas, riu, me chamam de Celminha Toda Pura. Ele sorri. Certamente, por você cuidar da alma tanto quanto do corpo.
Mais ou menos isso, vou todo ano aos barbadinhos e não saio com qualquer um.
Pele de anjo?
Não entendi.
Pele de anjo, mulher fina ou mesmo de forno e fogão que às vezes quebra a rotina.
Ah entendi, mas não chego a puritana.
Celminha (ela faz rodinhas de fumaça), preste atenção, é um teste. Se eu não fumasse, o que você diria depois de ter me perguntado se tinha cigarro.
Deixe-me ver... Então, eu lhe pediria um drops!
Um drops?
Sim! um drops. Geralmente, quem não fuma traz um misto ou pastilhas de hortelã no bolso.
Passou no teste. E ela sorri, pega no copo dele, o balança, o gim, não é gim?, está no finzinho; vai repetir ou quer sair agora? Vou repetir, quer um? Aceito, e serpeou a língua em seu ouvido, deixe que eu peço; um estalido para a garça.
Dois? - a garçonete a olhar para ele, que confirma.
Escrevi o meu nome num fio de arame e quem quer que me chame vai ter que gritar...
Gosto disso e da voz dela, Clara Nunes; não quer dançar? Foram, a pista já não comportava e colaram-se, Celminha espera.
Maria Macamba perdeu a caçamba num cateretê. Sambou noite e dia que até parecia que ia morrer. Nasceu num quilombo, aprendeu a levar tombo num canjerê. Foi de cesta no lombo com água e pitombo trocar por dendê... fuzuê, parede de barro não vai me prender...
Ele veio.
Celminha meneava, massa de bolo sendo mexida para o forno. E vendo Angélica (a garçonete loura) a aguardar junto ao balcão do bar - falam que gim encera, amor. Encera...? ah! Entendeu? Entendi. Ele se deu conta de que ia repetir o gim e com mais um copo.
...e pegava no coco, quebrava com um soco sem repetir, fuzuê.
Descola se lembrando agora de Marinete na catraia que a levara, ele escutou no Zica, para bordo de um navio-fantasma publicado no jornal A Noite, faltando que Marinete se fora para lá. Ou voltara? Havia quem acreditasse que ela fazia parte do navio, do navio mesmo.
Suaram. Celminha no toalete, ele se opacifica e a garçonete traz o gim em dois copos, mostra rapidamente com a lanterninha (parece vagalume) que é com tônica, gelo picado e limão; obrigado.
Celminha volta, apanha logo o copo, um gole, o come com os olhos e bole, afinal ainda não sei o seu nome.
Napoleão.
Difícil encontrar alguém que se chame Napoleão. Encontrou. É, encontrei. E sabe, simpatizei com você, e olhe que não saio com qualquer um. Até hoje, Celminha, só perdi uma batalha. Se entendi, com quem? Foi a de Waterloo. Ela se recorda daquele filme com Robert Taylor... A Ponte de Waterloo, sem mais plá.
Francis vê as horas: quase duas; Celminha receando perder a batalha - vai sair comigo, não vai? Marinete na catraia, Marinete deixou diário, soubesse ele com quem, se não o levou para bordo do navio-fantasma. Soubesse o procurava para lançar O Diário de Marinete, faria tanto ou mais sucesso que Quarto de Despejo, o diário da favelada Carolina Maria de Jesus.
Fiz-lhe uma pergunta, Napoleão! Celminha o sacode, que raiva, e larga a cabeça em seu ombro - ...nosso amor que foi tecido nos teares da ilusão desbotou, ficou puído, já não tem mais solução, não há pano pro remendo, nem há linha pro arremate, ainda mais que o destino nunca foi bom alfaiate... -- Os dois, calados, ouvindo Beth Carvalho.
Ela encena que desperta; já se decidiu? Ele a beija distante; hotel não dá, pensou, e minha cama é também de Isabel. E o chato é que Celminha Toda Pura se esperançara com o beijo, para ela a batalha não estava perdida. Ele chama a garçonete: a conta por favor. Tranquilamente, Celminha levanta-se; enquanto isso, vou lá dentro, bem, apanhar minha bolsa e me ajeitar; não me demoro.
A nota na mesa, Angélica preme a lanterninha, ele vê quanto e paga, o troco para você; obrigada. Ah! Ela pára e olha. Quero que entregue este dinheiro a Celminha. (Duas cédulas de cem). A que estava com você, não vai esperá-la, algum problema? Nenhum. Deve ser... não, deve ter sido alguma coisa dela, um caso antigo, estranho, a garçonete imaginou. Está bem, e recebeu as cédulas, dobra-as em várias partes, apressa-se, ele ainda mais.
Francis puxa a porta sem se virar, dois táxis aguardando clientes do Jeca’s para corrida, e já a uma boa distância ouve Celminha Toda Pura gritar por Napoleão. Maldade que lhe fizera, Francis censurava-se por a ter ofendido, será?, com espécie de esmola, embora gorda, no valor ou quase (quanto cobrava, não sabia) de uma cena de alta rotatividade.
Ê... fuzuê, parede de barro não vai me prender... Celminha meneando, ele viera, falam que gim encera, amor. Alta rotatividade, bolas. Adiante.
Duas e meia -- da madrugada! em seu relógio. Nos relógios de Lisboa, Paris, Londres, pelos seus conhecimentos de fusos horários, são 5 e 30. No México, ainda 11 e 30 da noite. Em São Francisco da Califórnia, menos duas horas que no México e cinco que no Brasil. No Vaticano, céus! já seis e meia da manhã, em Moscou faz tempo que pegaram no batente e na China devem estar arrotando o almoço. Artes meridianas, e chama um táxi.
I like to live in A-me-ri-ca, all is okay in A-me-ri-ca, everybody thinks in América, all is going well in Americaaa - o chofer içando o radio.- Não é o mexicano Trin… Trin… um tal de Lopez!
Trim que conheço, pensou Francis vendo duas cabeças no motorista, é o telefone a chamar ou então uma marca de pasta pro cabelo.
O sinal se fecha e o motorista se coça, minha filha fala tanto nele.
Trini Lopez - Francis acaba com sua angústia.
É isso aí
z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z z
z z z
Isabel o acorda, ela de folga no aeroporto - Francis nem se tocava. Sonhara com Celminha na catraia a acompanhar Marinete até o navio-fantasma, para sempre.
De casa para o ministério, do ministério para o jornal, como as horas correm! e as pessoas também - em cinema mudo, fora o barulho do trânsito e um grito vez e outra de "pega ladrão" a ecoar (assim mesmo) por várias bocas, cada passante à espera de que o do lado ou o da frente o agarre, diferente do tempo das zica’s girls, a uma cavalgadura: a correr de uma multidão que não corre atrás dele mas atrás da mesma coisa que ele, só que por meios legais, os homens com maleta de executivo. Corre-se às filas da previdência e da providência, ao neurologista, ao cardiologista, ao clínico geral, alguns a massagistas habilidosas, muitos ao cartório de protesto de títulos, para sujar/para limpar o nome, uma batalha. E a locomotiva:

QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA
RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY
RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY

QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA QRA
RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY
RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY RY

Francis a aguardar notícias em primeira mão, especialmente da múmia do faraó Ramsés II: já beirando os três mil anos e que fora levada ao Museu do Homem, de Paris, a UPI informava há dias, para restauração do rosto - atingido por fungos e bactérias.


Quando me aposentar, Pascal, quero montar uma fábrica de nostalgias. Começarei fabricando mata-borrão.

Missão genética

-- I --


Estranho, muito estranho o sossego dessa noite num edifício em que normalmente havia movimento até de madrugada. Nenhum aparelho de som ligado, nenhuma voz. Tudo parado, menos ele e seu relógio, agora também o elevador, vagaroso como sempre e a abrir a cada andar, porém sem viva alma por companhia. A não ser... o homem invisível de um filme a que assistira lá pelos anos ginasiais.
Onde se meteu essa gente? debaixo dos lençóis?! Não. Só se saíram todos, uns para o cinema ou o teatro e outros para o Jeca’s (a patota do 805) ou algum inferninho menos opaco.
O certo é que ele se recolhera pouco antes das onze. Recorda-se de que, com a algazarra de vizinhos, apesar de triturado custou a adormecer; portanto, não devia ter dormido mais que 3 quartos e esse tempo pareceu-lhe uma noite inteira.
Enfim no térreo, ninguém para subir. Tolice no entanto pensar em vazio maior que o do seu apartamento: a mulher e os filhos desfrutando uns dias no campo. Desde o casamento desacostumara-se à solidão, natural estar assim.
O porteiro, certamente o porteiro fora verificar algo de anormal no edifício ou fazer um lanche na esquina; deixou o portão aberto.
Clementino Rios a avançar pela calçada assoviando o quê, até que pára, como aturdido por não ver trânsito algum, de carros ou de pedestres; a rua, deserta. Olhou para o alto e convence-se, um pouco aliviado, de que pelo menos no céu nada mudara: as estrelas em seus lugares.
Em frente, e entrando na lanchonete da esquina apoia os cotovelos no balcão, esperou que alguém o atendesse; ninguém. Santodeus! o que terá acontecido?
Um telefone. Sim! Um telefonema desanuvia. Ou... o fará acreditar em cidade evacuada, no pior: em mundo evacuado, o seu mundo.
Telefone por aqui... no Marlim Azul.
Para o Marlim Azul e a passos largos, ainda que bambeando; aproveita para tomar um conhaque. Outra casa vazia! Um trago não basta, precisa de mais, de muito mais, e leva a garrafa, com o copo, para uma mesa.
Faltava pouco para as 11 horas quando se deitou e foi-lhe um sofrimento pegar no sono, por causa da mistura de flauta no 801 com um grupo no 805 que nos fins de semana, invariavelmente, entra pela madrugada - ou entrava? - curtindo som de estéreo, e a tevê do apartamento dos fundos a pino. Uma babel. Situação que como gostaria se repetisse!
“Será que me abandonaram? É, porque nessas histórias de evacuamento de mundo cumpre ficar um repórter. O repórter vai por último”.
Mas ele dormia durante a retirada; como a descrever noutro mundo?!
Se não o chamaram foi por suporem que estivesse também no campo, com a família; seria? De uma coisa tinha certeza - estava vivo: o conhaque, pela metade.
Levanta-se e atropelando cadeiras foi dar uma espiada da porta. Nenhum sinal de vida humana, além da dele mesmo. Volta-se e se lembra de que viera telefonar. Equilibra-se e com as mãos pelas paredes encontra o telefone. Abre mais os olhos e disca, prendendo nos lábios o que lhe restava de esperança. Uma voz e conhecida; Clementino solta o lábio, quase chora:
- A... brantes?
- Quem fala? Responda logo, que estou atolado.
- Cle... mentino!
- Parece mamado, Cle. O que houve? Não é disso! Onde está você?
- No Mar... lim!
- Onde!? Fale mais alto que mal consigo ouvi-lo com essa barulheira aí.
- No Mar... lim! Espere, dis... se que aqui...
- ...muito barulho!
- Não...! se não suporto mais este si... lêncio!
- Só me faltava essa. Escute, Cle: por que não vai pra casa dormir?
- Falo sério, pombas! Estava deitado. Cheguei a dormir um pouco. Um pouco que me valeu por uma noite. Por isso saí. Sem rumo. Sem ver ninguém passar. Nem a pé nem de carro. Nunca estive tão só... companheiro.
- Daí pegou a beber. O que quer que eu faça?
Clementino sente o conhaque refluir. Mal chega à calçada põe tudo para fora. Aspira o frio da madrugada e volta, ainda trôpego mas a alma leve, para junto do telefone. Já sem a voz, impaciente, de Manuel Abrantes, que fechada a edição do jornal nem esperou que se explicasse.
Na redação, Abrantes desopila:
- Ei, Formigão! Sabe quem telefonou e numa água genial?
- Quem! O Pereira?!
- Pereira curte as suas águas sem aporrinhar a gente. Imagine quem!
- Tirando o Pereirinha...
- O Clementino, Formigão! O Cle mesmo, quem diria! E você bem que poderia levá-lo para casa, já que mora por aqueles lados.
- Onde o encontro?
- No Marlim Azul.
- Deixe-o comigo.
Formigão arranca com o seu Fusquinha, todos os sinais abertos, estaciona de qualquer maneira; vai à procura do companheiro furando um ajuntamento de boêmios.
Dá com uma mesa desocupada, uma garrafa de conhaque pelo meio e um copo: deve ser do Cle, talvez ele esteja no sanitário. Não estava. Formigão vem lá de dentro e verifica que na mesa puseram mais um copo, com uma garrafa de água mineral.
Foi nesse entremeio que Clementino, de um plano justaposto ao normal, que se despovoara, paradoxalmente, com certos componentes sendo-lhe visíveis e palpáveis - como por exemplo as mesas, os copos, as próprias divisões e o equipamento do restaurante, para ele abandonado -, sem ver nem ouvir criaturas de sua espécie a não ser a voz de Manuel Abrantes no telefone, sentiu-se reconfortado por acabar aparecendo-lhe alguém.
Uma mulher. Ela entrara no Marlim sem causar-lhe outra reação que não fosse o propósito de tê-la em sua companhia por instantes - Abrantes pedira para falar mais alto devido aos ruídos que somente ele ouvia: de gente, de copos, de vida - e de certificar que não enlouquecera.
A mulher, ou o que fosse, aproximara-se da mesa de Clementino perguntando se podia sentar-se; poupara-lhe a delicadeza ou o atrevimento de convidá-la. Ao conhaque, a qualquer bebida alcoólica, ela prefere água mineral. O próprio Cle foi buscar, porque pelo menos para ele não havia outra pessoa ali.
Ele olha à volta e para a rua:
- A minha impressão é que a Terra se tenha despovoado, e que nós, apenas os dois, permanecemos.
- Não é bem assim - ela, tranqüila - mas faz alguma diferença? Não é como vocês falam?
- Normalmente, não faria.
Ele pensava em OVNI, ela sabia:
- Não se preocupe, sou de paz.
- E muito bonita! - não pôde evitar. - De onde veio?
- Acha?
- Não respondeu à minha pergunta.
- Desculpe-me, sou fêmea.
- E fêmea não tem origem?
- Achou-me bonita, o que quer mais?
- Sou jornalista.
- Sei disso.
- Como sabe?!
- Fui programada, e você foi escolhido.
- Não entendo.

Clementino trouxe-lhe a mão, examina-a dedo por dedo e apalpa o rosto da aparecida; tenta um gracejo:
- Eu pensava que só programassem máquinas. Agora vejo que programam gente também. E gente como você não deve falhar.
- Assim espero. Dependendo de você.
- O seu nome?
- Naira.
- O meu... Clementino, ou simplesmente Cle.
- Não precisa identificar-se, sei tudo a seu respeito. Clementino Rios, 32 anos, casado, três filhos, ah três filhos. Gosto muito de crianças. É por isso.
- Não entendo.
- Entenderá. Vamos?
Acompanha-a e sem mais perguntas, por enquanto. Ela parou do lado de um chafariz, firma os olhos para um ponto no espaço, imobiliza-se. Primeiro, ele avistou algo que juraria ser um pássaro; à medida que ia perdendo altura tomava outras formas, definindo-se, já perto, côncavo, pouco maior que um confortável automóvel.
O veículo espacial baixou devagarinho em direção de Naira, até um palmo ou dois de sua cabeça, e lá permaneceu, estático. Ela se moveu com naturalidade e erguendo um braço alcança pequena alavanca, aciona-a. Como resultado, um condutor metalino se desdobra, escada com um único degrau, não chegando a tocar o chão.
Naira pisa no degrau, logo é recolhida. Instantes depois, o condutor esticava-se de novo, dessa vez movido de dentro do veículo. Da entrada, já despida - ela espera. Clementino Rios tenta recuar, porém o apelo aguça, imperioso.
E subiu.


-- II --

A missão de Naira era genética, o que ele passou a compreender após o ato.
-- A dar certo - ela o justifica -, nós, que ficamos reduzidos a tão poucos, voltaremos a ser muitos e mortais, como vocês. Conseguimos a imortalidade condicional para sobrevivência de uma espécie, sem que tivéssemos conseguido perpetuá-la, como antes, pela renovação. Sem que os boros tivessem conseguido.
- Os boros, alguma tribo, alguma raça?
- Não, especificamente. Correspondem aos machos racionalizados da Terra. Aos homens, se preferir. As deiras correspondem às mulheres.
- Por que falou racionalizados e não racionais?
- Simples detalhe morfológico da minha maneira de expressar-me, de ver as coisas, talvez um vício que eu trouxe e que persiste, apesar de todo o meu conhecimento da linguagem e dos costumes de vocês.
- Ia dizendo que os boros não puderam mais reproduzir. Certo?
- Correto. Em Arua, o nosso planeta, como na Terra, Lumpa Maior, sucediam-se as gerações, na ordem normal de prevalencia do boro e da deira sobre o fróman, ou seja, a máquina. Utilizávamos o fróman como vocês agora, com a finalidade única de abreviar tarefas a nosso encargo demoradas. Diferençávamo-nos de vocês, naqueles tempos, pelo relacionamento afetivo que havia entre as comunidades, que conseguíramos depois de duras provas. Esse relacionamento, contudo, mais tarde, foi-se rompendo, ante a formação de clãs, ambiciosos e prepotentes, que alargavam os seus domínios pela acumulação de riquezas e com disputas, entre si, de posições no campo dos negócios, na gerência da coisa pública. As maiorias, acuadas, reconheciam, por assim dizer, o valor qualitativo das minorias. Estas cada vez mais gordas e aquelas cada vez mais magras. O problema: alimentá-las, para maior produtividade. Ou rentabilidade, dava no mesmo. Optou-se por uma substituição mais ampla, em termos lumpanos, do homem pela máquina. E pelo controle da fecundação, entre os boros. Quanto às deiras, havia que preservar, como um dogma, a sua capacidade conceptual, embora muitas vezes ociosa. Adotou-se depois, como norma obrigatória de limitação de filhos, a aplicação gradual de antigênias em recém-nascidos, nos machos, sem prever que seus efeitos passariam à geração seguinte e desastrosos.
- Como assim?
- É que os filhos varões daqueles nos quais fora inoculada a antigênia terminaram nascendo estéreis. Com a antigênia se pretendia limitar, apenas limitar, e num ciclo de vida, a natalidade. Não destruir, em tempo algum, todas as possibilidades de fecundação, porque isso seria uma insânia.
- Uma insânia concreta.
- Pois bem, aconteceu. E os cientistas, com os recursos a seu dispor, lançaram-se febrilmente a tentativas de neutralização do envelhecimento a fim de que prolongando a existência de certa quantidade de casais, em que se incluiriam, ganhassem tempo para uma reparação. O êxito dessa experiência os encorajou para uma outra, muito mais arrojada e que nunca, antes, haviam pensado fosse possível realizar. Perseguiram o rejuvenescimento, o retrocesso biológico até uma idade celular adequada, no que foram, igualmente, bem sucedidos. Não digo por completo, pois ficou-nos o arco senil, dir-se-ia como prova de que de fato retrocedemos.
- Só não entendo por que uma ciência que operou tais milagres, se assim se pode dizer, não obteve o que realmente pretendia com tudo isso, o que, pela lógica, seria o menos difícil.
-Não encontramos outra explicação além da empírica, de que estávamos condenados a viver até a autoclase, à autodestruição, pela insensatez daqueles que a limitarem suas próprias ambições preferiram limitar os nascimentos, não acreditando que isso pudesse degenerar em esterilização do boro.
- Condenados à autodestruição. Significa que vocês, aruanos, não chegam a ser imortais.
- Como já lhe falei, nossa imortalidade é condicional, um estado dependente de nós mesmos, do que nos cerca e de quem se acerque de cada um de nós, tanto lá como cá, em qualquer parte do universo. Muitos não suportaram esta forma de vida e renunciaram às suas quotas hormonais. Por consequência, morreram.
- Quotas hormonais?!
- São as nossas quotas de conservação. Necessitamos delas para sobreviver. No que consistem, levaria tempo para explicar-lhe.
- E como veio até nós?
- Programada para a primeira inseminação, que se daria em Lumpa, em Lumpa Menor, de conformação fisiográfica assemelhada à da Terra ou à de Arua. Nossos galaxianos, entretanto, observaram naquele pequeno planeta certas ocorrências que lhe poderiam ser fatais. Quando, não tinham a menor ideia. Apenas, que não convinha arriscar tal missão descendo num lugar que suspeitavam estivesse praticamente condenado ( * ), mesmo porque tínhamos ao alcance da ciência uma base segura que era a Terra. Na verdade, foi uma viagem longa, de duração equivalente à de algumas gerações lumpanas, terrenas.
- Neste caso... o nosso filho... Ele terá de ser como você para chegar a Arua! A menos que...
- Conclua o seu raciocínio.
- A primeira inseminação partiu de mim. A segunda... Não, não deve ser o que pensei.
- Sim, a segunda deverá partir de nosso filho.
Abalou-o. Contudo...
- E sendo menina?
- Não deixo a Terra antes de ter um varão capaz. Sendo menina desta vez, volto a procurá-lo. Se não se opõe.
- De modo algum. Em qualquer dos casos, peço-lhe que me procure. Já lhe quero muito.
Apesar do arco senil - pensou Clementino - da idade talvez de uma estrela, uma estrela tão bela de perto.
-- Agora, vá. - Os seus olhos brilhavam. - Encontrará tudo em ordem.
A começar pelos carros, que voavam nos dois sentidos.


( * ) “E Lumpa acaba qual um fol espetado” ( 1 ) O boletim de bordo teve um final lacônico, como convinha à realidade, extrema, daquela hora, conquanto parecesse blasfemo.
Um fol espetado, fêmeo. Constava nos tratados entomológicos que podia fecundar uma ninhada de 40 a 50 larvas. Relevado o exagero da comparação, ou o contra-senso, o nascimento de sêxtuplos entre os lumpanos, muito raro, era logo visto como resultado de “um parto folicular”. Aquele tipo de inseto seria uma mosca, na Terra, se a mosca, para procriar, inflasse até quase as dimensões de uma bola de soprar e se rompesse a uma dardada. Isso acontecia em Lumpa, aos fois - encontrados frequentemente nos baixios durante a estação-das-cores. As crianças dos baixios costumavam nessa época retesar suas lançadeiras contra os fois, uma das classes de invertebrados que o Címpano permitia fossem atacadas; tudo fazia mesmo para exterminá-los, por serem danosos à agricultura. O Címpano, organização sem similar na Terra, como governo de todos os cimpanáculos, denominação genérica das regiões ou comunidades lumpares - a dos baixios, a dos suns, habitat de monstros com este nome; a dos altos e a vulcânica -, se expunha a reações por vezes violentas da Campanha para Preservação dos Invertebrados. Também os suns eram invertebrados, apesar de enormes e impressionantemente ágeis; lá as pessoas se caracterizavam pelas vértebras, além da carne, que as distinguiam das outras criaturas.
A nave Borzn completara o vôo em redor de Lumpa, isto é, agora, daquela aparente massa ondulante de porócitos, em ebulição, observada do transvisor já a uma boa distância, de maneira que os sobreviventes ficassem resguardados. Bem ereto, como aprendera a manter-se no comando de uma nave, e os olhos pousados no indicador iônico, atento ao sinal propriamente de partida, o comandante da Borzn ordenou:
- Para Lumpa Maior!
Como se dissesse: “À Terra!”. Ainda no ciclo ninv-betz ( 2 ), alguns dos maiores cientistas de Lumpa anteviam aquele planeta condenado pela desintegração periódica, sobre suas bases, de um elemento classificado então empiricamente por átomo coloidal. Tal processo, pode-se denominar de unifásico de repulsão, minava-lhe pouco a pouco a capacidade natural de equilíbrio e progressão no tempo. De certo modo, fazia a estação-das-cores, assim conhecida por causa da sua luminescência, sempre tão estranha quanto bela. Para Garw-Orn, que entraria para a História como precursor da teoria da coleta nos campos refletidos, esse entrecruzamento de cores pelos espaços de Lumpa deslumbrava no sentido unicamente de encobrir o que a Ficção Científica denominara “a maldição do átomo”, entre outros frutos da imaginação.



( 1 ) Informações baseadas no relato de um desembarcado.
( 2 ) O ciclo ninv-betz corresponderia a uma determinada década na Terra, não revelada.