domingo, 14 de dezembro de 2008


Missão genética

-- I --


Estranho, muito estranho o sossego dessa noite num edifício em que normalmente havia movimento até de madrugada. Nenhum aparelho de som ligado, nenhuma voz. Tudo parado, menos ele e seu relógio, agora também o elevador, vagaroso como sempre e a abrir a cada andar, porém sem viva alma por companhia. A não ser... o homem invisível de um filme a que assistira lá pelos anos ginasiais.
Onde se meteu essa gente? debaixo dos lençóis?! Não. Só se saíram todos, uns para o cinema ou o teatro e outros para o Jeca’s (a patota do 805) ou algum inferninho menos opaco.
O certo é que ele se recolhera pouco antes das onze. Recorda-se de que, com a algazarra de vizinhos, apesar de triturado custou a adormecer; portanto, não devia ter dormido mais que 3 quartos e esse tempo pareceu-lhe uma noite inteira.
Enfim no térreo, ninguém para subir. Tolice no entanto pensar em vazio maior que o do seu apartamento: a mulher e os filhos desfrutando uns dias no campo. Desde o casamento desacostumara-se à solidão, natural estar assim.
O porteiro, certamente o porteiro fora verificar algo de anormal no edifício ou fazer um lanche na esquina; deixou o portão aberto.
Clementino Rios a avançar pela calçada assoviando o quê, até que pára, como aturdido por não ver trânsito algum, de carros ou de pedestres; a rua, deserta. Olhou para o alto e convence-se, um pouco aliviado, de que pelo menos no céu nada mudara: as estrelas em seus lugares.
Em frente, e entrando na lanchonete da esquina apoia os cotovelos no balcão, esperou que alguém o atendesse; ninguém. Santodeus! o que terá acontecido?
Um telefone. Sim! Um telefonema desanuvia. Ou... o fará acreditar em cidade evacuada, no pior: em mundo evacuado, o seu mundo.
Telefone por aqui... no Marlim Azul.
Para o Marlim Azul e a passos largos, ainda que bambeando; aproveita para tomar um conhaque. Outra casa vazia! Um trago não basta, precisa de mais, de muito mais, e leva a garrafa, com o copo, para uma mesa.
Faltava pouco para as 11 horas quando se deitou e foi-lhe um sofrimento pegar no sono, por causa da mistura de flauta no 801 com um grupo no 805 que nos fins de semana, invariavelmente, entra pela madrugada - ou entrava? - curtindo som de estéreo, e a tevê do apartamento dos fundos a pino. Uma babel. Situação que como gostaria se repetisse!
“Será que me abandonaram? É, porque nessas histórias de evacuamento de mundo cumpre ficar um repórter. O repórter vai por último”.
Mas ele dormia durante a retirada; como a descrever noutro mundo?!
Se não o chamaram foi por suporem que estivesse também no campo, com a família; seria? De uma coisa tinha certeza - estava vivo: o conhaque, pela metade.
Levanta-se e atropelando cadeiras foi dar uma espiada da porta. Nenhum sinal de vida humana, além da dele mesmo. Volta-se e se lembra de que viera telefonar. Equilibra-se e com as mãos pelas paredes encontra o telefone. Abre mais os olhos e disca, prendendo nos lábios o que lhe restava de esperança. Uma voz e conhecida; Clementino solta o lábio, quase chora:
- A... brantes?
- Quem fala? Responda logo, que estou atolado.
- Cle... mentino!
- Parece mamado, Cle. O que houve? Não é disso! Onde está você?
- No Mar... lim!
- Onde!? Fale mais alto que mal consigo ouvi-lo com essa barulheira aí.
- No Mar... lim! Espere, dis... se que aqui...
- ...muito barulho!
- Não...! se não suporto mais este si... lêncio!
- Só me faltava essa. Escute, Cle: por que não vai pra casa dormir?
- Falo sério, pombas! Estava deitado. Cheguei a dormir um pouco. Um pouco que me valeu por uma noite. Por isso saí. Sem rumo. Sem ver ninguém passar. Nem a pé nem de carro. Nunca estive tão só... companheiro.
- Daí pegou a beber. O que quer que eu faça?
Clementino sente o conhaque refluir. Mal chega à calçada põe tudo para fora. Aspira o frio da madrugada e volta, ainda trôpego mas a alma leve, para junto do telefone. Já sem a voz, impaciente, de Manuel Abrantes, que fechada a edição do jornal nem esperou que se explicasse.
Na redação, Abrantes desopila:
- Ei, Formigão! Sabe quem telefonou e numa água genial?
- Quem! O Pereira?!
- Pereira curte as suas águas sem aporrinhar a gente. Imagine quem!
- Tirando o Pereirinha...
- O Clementino, Formigão! O Cle mesmo, quem diria! E você bem que poderia levá-lo para casa, já que mora por aqueles lados.
- Onde o encontro?
- No Marlim Azul.
- Deixe-o comigo.
Formigão arranca com o seu Fusquinha, todos os sinais abertos, estaciona de qualquer maneira; vai à procura do companheiro furando um ajuntamento de boêmios.
Dá com uma mesa desocupada, uma garrafa de conhaque pelo meio e um copo: deve ser do Cle, talvez ele esteja no sanitário. Não estava. Formigão vem lá de dentro e verifica que na mesa puseram mais um copo, com uma garrafa de água mineral.
Foi nesse entremeio que Clementino, de um plano justaposto ao normal, que se despovoara, paradoxalmente, com certos componentes sendo-lhe visíveis e palpáveis - como por exemplo as mesas, os copos, as próprias divisões e o equipamento do restaurante, para ele abandonado -, sem ver nem ouvir criaturas de sua espécie a não ser a voz de Manuel Abrantes no telefone, sentiu-se reconfortado por acabar aparecendo-lhe alguém.
Uma mulher. Ela entrara no Marlim sem causar-lhe outra reação que não fosse o propósito de tê-la em sua companhia por instantes - Abrantes pedira para falar mais alto devido aos ruídos que somente ele ouvia: de gente, de copos, de vida - e de certificar que não enlouquecera.
A mulher, ou o que fosse, aproximara-se da mesa de Clementino perguntando se podia sentar-se; poupara-lhe a delicadeza ou o atrevimento de convidá-la. Ao conhaque, a qualquer bebida alcoólica, ela prefere água mineral. O próprio Cle foi buscar, porque pelo menos para ele não havia outra pessoa ali.
Ele olha à volta e para a rua:
- A minha impressão é que a Terra se tenha despovoado, e que nós, apenas os dois, permanecemos.
- Não é bem assim - ela, tranqüila - mas faz alguma diferença? Não é como vocês falam?
- Normalmente, não faria.
Ele pensava em OVNI, ela sabia:
- Não se preocupe, sou de paz.
- E muito bonita! - não pôde evitar. - De onde veio?
- Acha?
- Não respondeu à minha pergunta.
- Desculpe-me, sou fêmea.
- E fêmea não tem origem?
- Achou-me bonita, o que quer mais?
- Sou jornalista.
- Sei disso.
- Como sabe?!
- Fui programada, e você foi escolhido.
- Não entendo.

Clementino trouxe-lhe a mão, examina-a dedo por dedo e apalpa o rosto da aparecida; tenta um gracejo:
- Eu pensava que só programassem máquinas. Agora vejo que programam gente também. E gente como você não deve falhar.
- Assim espero. Dependendo de você.
- O seu nome?
- Naira.
- O meu... Clementino, ou simplesmente Cle.
- Não precisa identificar-se, sei tudo a seu respeito. Clementino Rios, 32 anos, casado, três filhos, ah três filhos. Gosto muito de crianças. É por isso.
- Não entendo.
- Entenderá. Vamos?
Acompanha-a e sem mais perguntas, por enquanto. Ela parou do lado de um chafariz, firma os olhos para um ponto no espaço, imobiliza-se. Primeiro, ele avistou algo que juraria ser um pássaro; à medida que ia perdendo altura tomava outras formas, definindo-se, já perto, côncavo, pouco maior que um confortável automóvel.
O veículo espacial baixou devagarinho em direção de Naira, até um palmo ou dois de sua cabeça, e lá permaneceu, estático. Ela se moveu com naturalidade e erguendo um braço alcança pequena alavanca, aciona-a. Como resultado, um condutor metalino se desdobra, escada com um único degrau, não chegando a tocar o chão.
Naira pisa no degrau, logo é recolhida. Instantes depois, o condutor esticava-se de novo, dessa vez movido de dentro do veículo. Da entrada, já despida - ela espera. Clementino Rios tenta recuar, porém o apelo aguça, imperioso.
E subiu.


-- II --

A missão de Naira era genética, o que ele passou a compreender após o ato.
-- A dar certo - ela o justifica -, nós, que ficamos reduzidos a tão poucos, voltaremos a ser muitos e mortais, como vocês. Conseguimos a imortalidade condicional para sobrevivência de uma espécie, sem que tivéssemos conseguido perpetuá-la, como antes, pela renovação. Sem que os boros tivessem conseguido.
- Os boros, alguma tribo, alguma raça?
- Não, especificamente. Correspondem aos machos racionalizados da Terra. Aos homens, se preferir. As deiras correspondem às mulheres.
- Por que falou racionalizados e não racionais?
- Simples detalhe morfológico da minha maneira de expressar-me, de ver as coisas, talvez um vício que eu trouxe e que persiste, apesar de todo o meu conhecimento da linguagem e dos costumes de vocês.
- Ia dizendo que os boros não puderam mais reproduzir. Certo?
- Correto. Em Arua, o nosso planeta, como na Terra, Lumpa Maior, sucediam-se as gerações, na ordem normal de prevalencia do boro e da deira sobre o fróman, ou seja, a máquina. Utilizávamos o fróman como vocês agora, com a finalidade única de abreviar tarefas a nosso encargo demoradas. Diferençávamo-nos de vocês, naqueles tempos, pelo relacionamento afetivo que havia entre as comunidades, que conseguíramos depois de duras provas. Esse relacionamento, contudo, mais tarde, foi-se rompendo, ante a formação de clãs, ambiciosos e prepotentes, que alargavam os seus domínios pela acumulação de riquezas e com disputas, entre si, de posições no campo dos negócios, na gerência da coisa pública. As maiorias, acuadas, reconheciam, por assim dizer, o valor qualitativo das minorias. Estas cada vez mais gordas e aquelas cada vez mais magras. O problema: alimentá-las, para maior produtividade. Ou rentabilidade, dava no mesmo. Optou-se por uma substituição mais ampla, em termos lumpanos, do homem pela máquina. E pelo controle da fecundação, entre os boros. Quanto às deiras, havia que preservar, como um dogma, a sua capacidade conceptual, embora muitas vezes ociosa. Adotou-se depois, como norma obrigatória de limitação de filhos, a aplicação gradual de antigênias em recém-nascidos, nos machos, sem prever que seus efeitos passariam à geração seguinte e desastrosos.
- Como assim?
- É que os filhos varões daqueles nos quais fora inoculada a antigênia terminaram nascendo estéreis. Com a antigênia se pretendia limitar, apenas limitar, e num ciclo de vida, a natalidade. Não destruir, em tempo algum, todas as possibilidades de fecundação, porque isso seria uma insânia.
- Uma insânia concreta.
- Pois bem, aconteceu. E os cientistas, com os recursos a seu dispor, lançaram-se febrilmente a tentativas de neutralização do envelhecimento a fim de que prolongando a existência de certa quantidade de casais, em que se incluiriam, ganhassem tempo para uma reparação. O êxito dessa experiência os encorajou para uma outra, muito mais arrojada e que nunca, antes, haviam pensado fosse possível realizar. Perseguiram o rejuvenescimento, o retrocesso biológico até uma idade celular adequada, no que foram, igualmente, bem sucedidos. Não digo por completo, pois ficou-nos o arco senil, dir-se-ia como prova de que de fato retrocedemos.
- Só não entendo por que uma ciência que operou tais milagres, se assim se pode dizer, não obteve o que realmente pretendia com tudo isso, o que, pela lógica, seria o menos difícil.
-Não encontramos outra explicação além da empírica, de que estávamos condenados a viver até a autoclase, à autodestruição, pela insensatez daqueles que a limitarem suas próprias ambições preferiram limitar os nascimentos, não acreditando que isso pudesse degenerar em esterilização do boro.
- Condenados à autodestruição. Significa que vocês, aruanos, não chegam a ser imortais.
- Como já lhe falei, nossa imortalidade é condicional, um estado dependente de nós mesmos, do que nos cerca e de quem se acerque de cada um de nós, tanto lá como cá, em qualquer parte do universo. Muitos não suportaram esta forma de vida e renunciaram às suas quotas hormonais. Por consequência, morreram.
- Quotas hormonais?!
- São as nossas quotas de conservação. Necessitamos delas para sobreviver. No que consistem, levaria tempo para explicar-lhe.
- E como veio até nós?
- Programada para a primeira inseminação, que se daria em Lumpa, em Lumpa Menor, de conformação fisiográfica assemelhada à da Terra ou à de Arua. Nossos galaxianos, entretanto, observaram naquele pequeno planeta certas ocorrências que lhe poderiam ser fatais. Quando, não tinham a menor ideia. Apenas, que não convinha arriscar tal missão descendo num lugar que suspeitavam estivesse praticamente condenado ( * ), mesmo porque tínhamos ao alcance da ciência uma base segura que era a Terra. Na verdade, foi uma viagem longa, de duração equivalente à de algumas gerações lumpanas, terrenas.
- Neste caso... o nosso filho... Ele terá de ser como você para chegar a Arua! A menos que...
- Conclua o seu raciocínio.
- A primeira inseminação partiu de mim. A segunda... Não, não deve ser o que pensei.
- Sim, a segunda deverá partir de nosso filho.
Abalou-o. Contudo...
- E sendo menina?
- Não deixo a Terra antes de ter um varão capaz. Sendo menina desta vez, volto a procurá-lo. Se não se opõe.
- De modo algum. Em qualquer dos casos, peço-lhe que me procure. Já lhe quero muito.
Apesar do arco senil - pensou Clementino - da idade talvez de uma estrela, uma estrela tão bela de perto.
-- Agora, vá. - Os seus olhos brilhavam. - Encontrará tudo em ordem.
A começar pelos carros, que voavam nos dois sentidos.


( * ) “E Lumpa acaba qual um fol espetado” ( 1 ) O boletim de bordo teve um final lacônico, como convinha à realidade, extrema, daquela hora, conquanto parecesse blasfemo.
Um fol espetado, fêmeo. Constava nos tratados entomológicos que podia fecundar uma ninhada de 40 a 50 larvas. Relevado o exagero da comparação, ou o contra-senso, o nascimento de sêxtuplos entre os lumpanos, muito raro, era logo visto como resultado de “um parto folicular”. Aquele tipo de inseto seria uma mosca, na Terra, se a mosca, para procriar, inflasse até quase as dimensões de uma bola de soprar e se rompesse a uma dardada. Isso acontecia em Lumpa, aos fois - encontrados frequentemente nos baixios durante a estação-das-cores. As crianças dos baixios costumavam nessa época retesar suas lançadeiras contra os fois, uma das classes de invertebrados que o Címpano permitia fossem atacadas; tudo fazia mesmo para exterminá-los, por serem danosos à agricultura. O Címpano, organização sem similar na Terra, como governo de todos os cimpanáculos, denominação genérica das regiões ou comunidades lumpares - a dos baixios, a dos suns, habitat de monstros com este nome; a dos altos e a vulcânica -, se expunha a reações por vezes violentas da Campanha para Preservação dos Invertebrados. Também os suns eram invertebrados, apesar de enormes e impressionantemente ágeis; lá as pessoas se caracterizavam pelas vértebras, além da carne, que as distinguiam das outras criaturas.
A nave Borzn completara o vôo em redor de Lumpa, isto é, agora, daquela aparente massa ondulante de porócitos, em ebulição, observada do transvisor já a uma boa distância, de maneira que os sobreviventes ficassem resguardados. Bem ereto, como aprendera a manter-se no comando de uma nave, e os olhos pousados no indicador iônico, atento ao sinal propriamente de partida, o comandante da Borzn ordenou:
- Para Lumpa Maior!
Como se dissesse: “À Terra!”. Ainda no ciclo ninv-betz ( 2 ), alguns dos maiores cientistas de Lumpa anteviam aquele planeta condenado pela desintegração periódica, sobre suas bases, de um elemento classificado então empiricamente por átomo coloidal. Tal processo, pode-se denominar de unifásico de repulsão, minava-lhe pouco a pouco a capacidade natural de equilíbrio e progressão no tempo. De certo modo, fazia a estação-das-cores, assim conhecida por causa da sua luminescência, sempre tão estranha quanto bela. Para Garw-Orn, que entraria para a História como precursor da teoria da coleta nos campos refletidos, esse entrecruzamento de cores pelos espaços de Lumpa deslumbrava no sentido unicamente de encobrir o que a Ficção Científica denominara “a maldição do átomo”, entre outros frutos da imaginação.



( 1 ) Informações baseadas no relato de um desembarcado.
( 2 ) O ciclo ninv-betz corresponderia a uma determinada década na Terra, não revelada.

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