A foice e a camisola
Os quatro homens se puseram de cócoras atrás do barranco, as foices deitadas, as orelhas de pé. Belarmino avançou só, pelo quintal, pára junto da figueira, imagina-se cobra picando o acusador de Anjoim. Barulho na estrada, esperou. Um fenemê à toda, virou pó. Agora:
- Migué Garupa!
A casa escureceu, o soalho chiou rente à entrada, Belarmino encosta-se à parede, cauteloso.
- Não tô aqui pra te fazer mal, Migué. Só pra te avisar d’uma coisa.
- Que quer comigo, agitadô? - ele puxou a porta, sem mostrar a cara. - Pode entrar.
- Nós conversa cá fora. Mas vem de paz, pruquê senão...
Miguel desponta coçando duas garruchas, duas de uma vez, fincadas na cinta, olhando pros pés dele.
- Pra minha pele tudo isso, delatô? - Belarmino casara as mãos.
- Senão...
- Olha, Migué. Cuidado, pruquê meus homis tão nas fuças de nós.
Miguel manda a vista pelos arredores, sombras chão em fora: das árvores, do barranco, da madeira empilhada na margem da rodovia. Encolheu-se para a sombra de Belarmino, única de gente, além da dele, Miguel; mesmo assim não se arrependeu de ter apontado Anjoim às autoridades. Mais um serviço prestado ao coronel. Ao coronel, sim. Os comunas zombavam, mas o homem forte daquelas abas tinha ainda quem o tratasse pelo título que impunha continência.
- Se ocê é Belarmino... - apruma a cabeça e pensa um pouco, pensa em oferecer-lhe dinheiro; a não ser com muito tato poria tudo a perder.- Nós pode entrar num acordo...
Belarmino amarra as ventas. Pressentiu a intenção de Garupa, que fugira à luta - traidor de uma figa! - bandeando-se para o lado dos grileiros, se vendendo ao coronel de merda. Por uma casa, água corrente, luz elétrica, até camisola pra ele amarrotar no corpo da nega. A nega aparecera com parte de assombração. Enfia o nariz no tempo:
- Que acordo que nada, Migué. Essa gente precisa eu sei do quê.
- Vai drumir, muié!
A assombração rabeou casa a fundo, sem que esperasse segunda ordem. Belarmino goza a cena:
- Tá com disposição, hein!
- Então! vamos conversar?
- Cê sabe muito bem que não quero conversa com delatô.
- Eu muito menos com agitadô.
- Olha, Garupa...
- Não gosto que me chame de Garupa.
- Quem carrega filho do coroné na cacunda?
Miguel espumou, responderia à ofensa com outra moeda - na cacunda, filho do coronel -- arrebentaria a cacunda de Belarmino e de quem mais se aproximasse. Sacou das duas garruchas. Os dedos endureceram. Foices cortando o ar. Os homens de Belarmino.
- Tá vendo, Migué Garupa?!
Cercaram-no. Ele esfriara, fazia só resmungar; as garruchas já de boca para o chão. A nega de camisola correra para a porta invocando fileiras de santos. Dá com o mano empunhando uma foice.
- Até ocê, Tião?
Tião encara-a, escondendo os beiços.
- Ocê metido co’esse bando?! Quando me falaram não querditei.
- Querdita agora? Prefiro ficar co’a minha gente. Cê pode continuar lavando as cuecas do coroné. E mais arguma coisa...
Bastiana instigou o marido com o cotovelo.
- Deixa comigo, Tião - Belarmino evita. - Nós já preguemos um susto no traídô. Dessa vez foi um susto, hein Migué! Na outra... não sei não. Aconselho ocê a parar com os fuxicos. Se não quiser que nós faz o trabalho...
Miguel trancou a casa, os quatro marcham para a estrada, foice ao ombro - fuzil de camponês. Atrás vai Belarmino, a guardar distância, olhando a cada passo para a janela do inimigo. Já na estrada se junta aos companheiros. Respira orgulhoso por não se curvar às garruchas de Miguel, certo de que se elas cuspissem fogo o traidor morreria picado a foice - sem direito a extrema-unção.
Posseiros de outras fazendas andavam com carabina a tiracolo. Os das terras de que o coronel de Garupa se proclamava dono absoluto capinariam alto se fosse necessário.
Para plantar a camisola de Bastiana.
¹ Abreviatura de FNM - Fábrica Nacional de Motores, fundada em 1942 no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para produzir motores aeronáuticos durante a II Guerra Mundial. Terminada a guerra e já como sociedade anônima, sendo o governo federal detentor de parte das ações, a FNM, mediante contrato com a italiana Isotta Fraschini, põe na estrada o primeiro caminhão brasileiro, em 1949. Mas foi a partir de 1951, tendo se associado à Alfa-Romeo (a Isotta abrira falência), que o fenemê, mais potente, se tornou a sensação e orgulho da indústria de veículos pesados do Brasil. Vivendo seus dias de glória.
Os quatro homens se puseram de cócoras atrás do barranco, as foices deitadas, as orelhas de pé. Belarmino avançou só, pelo quintal, pára junto da figueira, imagina-se cobra picando o acusador de Anjoim. Barulho na estrada, esperou. Um fenemê à toda, virou pó. Agora:
- Migué Garupa!
A casa escureceu, o soalho chiou rente à entrada, Belarmino encosta-se à parede, cauteloso.
- Não tô aqui pra te fazer mal, Migué. Só pra te avisar d’uma coisa.
- Que quer comigo, agitadô? - ele puxou a porta, sem mostrar a cara. - Pode entrar.
- Nós conversa cá fora. Mas vem de paz, pruquê senão...
Miguel desponta coçando duas garruchas, duas de uma vez, fincadas na cinta, olhando pros pés dele.
- Pra minha pele tudo isso, delatô? - Belarmino casara as mãos.
- Senão...
- Olha, Migué. Cuidado, pruquê meus homis tão nas fuças de nós.
Miguel manda a vista pelos arredores, sombras chão em fora: das árvores, do barranco, da madeira empilhada na margem da rodovia. Encolheu-se para a sombra de Belarmino, única de gente, além da dele, Miguel; mesmo assim não se arrependeu de ter apontado Anjoim às autoridades. Mais um serviço prestado ao coronel. Ao coronel, sim. Os comunas zombavam, mas o homem forte daquelas abas tinha ainda quem o tratasse pelo título que impunha continência.
- Se ocê é Belarmino... - apruma a cabeça e pensa um pouco, pensa em oferecer-lhe dinheiro; a não ser com muito tato poria tudo a perder.- Nós pode entrar num acordo...
Belarmino amarra as ventas. Pressentiu a intenção de Garupa, que fugira à luta - traidor de uma figa! - bandeando-se para o lado dos grileiros, se vendendo ao coronel de merda. Por uma casa, água corrente, luz elétrica, até camisola pra ele amarrotar no corpo da nega. A nega aparecera com parte de assombração. Enfia o nariz no tempo:
- Que acordo que nada, Migué. Essa gente precisa eu sei do quê.
- Vai drumir, muié!
A assombração rabeou casa a fundo, sem que esperasse segunda ordem. Belarmino goza a cena:
- Tá com disposição, hein!
- Então! vamos conversar?
- Cê sabe muito bem que não quero conversa com delatô.
- Eu muito menos com agitadô.
- Olha, Garupa...
- Não gosto que me chame de Garupa.
- Quem carrega filho do coroné na cacunda?
Miguel espumou, responderia à ofensa com outra moeda - na cacunda, filho do coronel -- arrebentaria a cacunda de Belarmino e de quem mais se aproximasse. Sacou das duas garruchas. Os dedos endureceram. Foices cortando o ar. Os homens de Belarmino.
- Tá vendo, Migué Garupa?!
Cercaram-no. Ele esfriara, fazia só resmungar; as garruchas já de boca para o chão. A nega de camisola correra para a porta invocando fileiras de santos. Dá com o mano empunhando uma foice.
- Até ocê, Tião?
Tião encara-a, escondendo os beiços.
- Ocê metido co’esse bando?! Quando me falaram não querditei.
- Querdita agora? Prefiro ficar co’a minha gente. Cê pode continuar lavando as cuecas do coroné. E mais arguma coisa...
Bastiana instigou o marido com o cotovelo.
- Deixa comigo, Tião - Belarmino evita. - Nós já preguemos um susto no traídô. Dessa vez foi um susto, hein Migué! Na outra... não sei não. Aconselho ocê a parar com os fuxicos. Se não quiser que nós faz o trabalho...
Miguel trancou a casa, os quatro marcham para a estrada, foice ao ombro - fuzil de camponês. Atrás vai Belarmino, a guardar distância, olhando a cada passo para a janela do inimigo. Já na estrada se junta aos companheiros. Respira orgulhoso por não se curvar às garruchas de Miguel, certo de que se elas cuspissem fogo o traidor morreria picado a foice - sem direito a extrema-unção.
Posseiros de outras fazendas andavam com carabina a tiracolo. Os das terras de que o coronel de Garupa se proclamava dono absoluto capinariam alto se fosse necessário.
Para plantar a camisola de Bastiana.
¹ Abreviatura de FNM - Fábrica Nacional de Motores, fundada em 1942 no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para produzir motores aeronáuticos durante a II Guerra Mundial. Terminada a guerra e já como sociedade anônima, sendo o governo federal detentor de parte das ações, a FNM, mediante contrato com a italiana Isotta Fraschini, põe na estrada o primeiro caminhão brasileiro, em 1949. Mas foi a partir de 1951, tendo se associado à Alfa-Romeo (a Isotta abrira falência), que o fenemê, mais potente, se tornou a sensação e orgulho da indústria de veículos pesados do Brasil. Vivendo seus dias de glória.
Nenhum comentário:
Postar um comentário