domingo, 14 de dezembro de 2008

A foice e a camisola




Os quatro homens se puseram de cócoras atrás do barranco, as foices deitadas, as orelhas de pé. Belarmino avançou só, pelo quintal, pára junto da figueira, imagina-se cobra picando o acusador de Anjoim. Barulho na estrada, esperou. Um fenemê à toda, virou pó. Agora:
- Migué Garupa!
A casa escureceu, o soalho chiou rente à entrada, Belarmino encosta-se à parede, cauteloso.
- Não tô aqui pra te fazer mal, Migué. Só pra te avisar d’uma coisa.
- Que quer comigo, agitadô? - ele puxou a porta, sem mostrar a cara. - Pode entrar.
- Nós conversa cá fora. Mas vem de paz, pruquê senão...
Miguel desponta coçando duas garruchas, duas de uma vez, fincadas na cinta, olhando pros pés dele.
- Pra minha pele tudo isso, delatô? - Belarmino casara as mãos.
- Senão...
- Olha, Migué. Cuidado, pruquê meus homis tão nas fuças de nós.
Miguel manda a vista pelos arredores, sombras chão em fora: das árvores, do barranco, da madeira empilhada na margem da rodovia. Encolheu-se para a sombra de Belarmino, única de gente, além da dele, Miguel; mesmo assim não se arrependeu de ter apontado Anjoim às autoridades. Mais um serviço prestado ao coronel. Ao coronel, sim. Os comunas zombavam, mas o homem forte daquelas abas tinha ainda quem o tratasse pelo título que impunha continência.
- Se ocê é Belarmino... - apruma a cabeça e pensa um pouco, pensa em oferecer-lhe dinheiro; a não ser com muito tato poria tudo a perder.- Nós pode entrar num acordo...
Belarmino amarra as ventas. Pressentiu a intenção de Garupa, que fugira à luta - traidor de uma figa! - bandeando-se para o lado dos grileiros, se vendendo ao coronel de merda. Por uma casa, água corrente, luz elétrica, até camisola pra ele amarrotar no corpo da nega. A nega aparecera com parte de assombração. Enfia o nariz no tempo:
- Que acordo que nada, Migué. Essa gente precisa eu sei do quê.
- Vai drumir, muié!
A assombração rabeou casa a fundo, sem que esperasse segunda ordem. Belarmino goza a cena:
- Tá com disposição, hein!
- Então! vamos conversar?
- Cê sabe muito bem que não quero conversa com delatô.
- Eu muito menos com agitadô.
- Olha, Garupa...
- Não gosto que me chame de Garupa.
- Quem carrega filho do coroné na cacunda?
Miguel espumou, responderia à ofensa com outra moeda - na cacunda, filho do coronel -- arrebentaria a cacunda de Belarmino e de quem mais se aproximasse. Sacou das duas garruchas. Os dedos endureceram. Foices cortando o ar. Os homens de Belarmino.
- Tá vendo, Migué Garupa?!
Cercaram-no. Ele esfriara, fazia só resmungar; as garruchas já de boca para o chão. A nega de camisola correra para a porta invocando fileiras de santos. Dá com o mano empunhando uma foice.
- Até ocê, Tião?
Tião encara-a, escondendo os beiços.
- Ocê metido co’esse bando?! Quando me falaram não querditei.
- Querdita agora? Prefiro ficar co’a minha gente. Cê pode continuar lavando as cuecas do coroné. E mais arguma coisa...
Bastiana instigou o marido com o cotovelo.
- Deixa comigo, Tião - Belarmino evita. - Nós já preguemos um susto no traídô. Dessa vez foi um susto, hein Migué! Na outra... não sei não. Aconselho ocê a parar com os fuxicos. Se não quiser que nós faz o trabalho...
Miguel trancou a casa, os quatro marcham para a estrada, foice ao ombro - fuzil de camponês. Atrás vai Belarmino, a guardar distância, olhando a cada passo para a janela do inimigo. Já na estrada se junta aos companheiros. Respira orgulhoso por não se curvar às garruchas de Miguel, certo de que se elas cuspissem fogo o traidor morreria picado a foice - sem direito a extrema-unção.
Posseiros de outras fazendas andavam com carabina a tiracolo. Os das terras de que o coronel de Garupa se proclamava dono absoluto capinariam alto se fosse necessário.
Para plantar a camisola de Bastiana.


¹ Abreviatura de FNM - Fábrica Nacional de Motores, fundada em 1942 no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para produzir motores aeronáuticos durante a II Guerra Mundial. Terminada a guerra e já como sociedade anônima, sendo o governo federal detentor de parte das ações, a FNM, mediante contrato com a italiana Isotta Fraschini, põe na estrada o primeiro caminhão brasileiro, em 1949. Mas foi a partir de 1951, tendo se associado à Alfa-Romeo (a Isotta abrira falência), que o fenemê, mais potente, se tornou a sensação e orgulho da indústria de veículos pesados do Brasil. Vivendo seus dias de glória.

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