domingo, 14 de dezembro de 2008

Introdução

FERNANDO HENRIQUES GONÇALVES




Novelas

Sumário



Introdução


O colecionador de notícias

Missão genética

Uma história de guerra

Sra. Hamlet

A noiva do passado

Duelo de reis







Introdução


Os textos aqui apresentados vêm de longe. Alguns, do tempo em que era ainda elegante envergar um linho S-120 e calçar um cromo alemão. E pensar que se não tivessem sido publicados, esparsos, na imprensa a partir da década de 50, à exceção de O colecionador de notícias (...) - dos anos já agonizantes do regime proclamado em 1964 no Brasil, ou o que se deu foi uma contrarrevolução? - hoje, talvez amargassem o destino de Ainda Existe uma Canção, que eu pretendia que saísse com um compacto simples encartado na capa. Mas o editor Oscar Mano informava-me que não havia lei, em nosso país, que amparasse tal projecto. As condições que eu praticamente impusera para aquela noveleta entrar em máquina, pela Minerva, lhe foram fatais. O Diário da Noite, do Rio, noticiara meu livro-disco através de Juvenal Portela, após passar a tabloide sob a direção de Alberto Dines. Com o fechamento de A Noite, levara-me Clemente Luz para o Diário da Noite; Carlos Eiras a gabar-se de ser o pioneiro, no Rio, da manchete garrafal: ACABOU A GUERRA (a II Guerra Mundial), e Fernando Chateaubriand a descer à redação, de uma reunião de cúpula, remoendo aos gritos um Fidel Castro que fizesse justiça no império deixado por Assis Chateaubriand. Orlando Motta, o diretor quando lá entrei, a pensar por bom tempo que eu fosse seu conterrâneo, também um 'cabeça chata', porém nada se alterou ao saber-me fluminense. Vão-se os verdes anos e me encontro com Oscar Mano na Avenida Rio Branco, a quem eu chegara pelas mãos do poeta Jacy Pacheco, primo e biógrafo de Noel Rosa e pianista de cinema mudo na mocidade. Alertava-me aquele editor para que fosse buscar o livro no acervo da antiga Minerva. Por não ter ido, creio tê-lo perdido para sempre, e olhe que eu pensava em reescrevê-lo. Junto ou em separado se fora também uma gravação em acetato em que o pianista José Luciano tocava a melodia a título experimental. Em outras circunstâncias, desapareceram numa pequena editora à qual estaria ligado um colunista social, pelo que me contaram, os originais de uma sátira que eu titulara Na Corte da Dama de Preto, anunciada na contracapa de Um Dia Seremos Nós! como já no prelo. Jorge Veiga, personalíssimo roufenho, cantava de Miguel Gustavo: “Doutor em anedota e em champanhota / estou acontecendo no café-soçaite/ só digo enchanté, muito merci e all-right / troquei a luz do dia pela luz da Light./ Agora estou somente contra a Dama de Preto / nos dez mais elegantes eu estou também / adoro Riverside, só pesco em Cabo Frio / decididamente, eu sou gente bem./ Enquanto a plebe rude da cidade dorme”... Era o tempo do tenente Bandeira (Jorge Alberto Franco Bandeira), que se notabilizara no rasto do crime do Sacopã, em cuja ladeira fora encontrado em 7 de abril de 1952 um Citroen preto com o corpo da suposta vítima do militar, o bancário Afrânio Arsênio de Lemos, tendo-se fechado o triângulo com uma mulher, no mínimo, talhada para capa de revista: Marina. E saíram estes versos, guardados na memória como outros, poucos, de uma entrevista com a misteriosa Dama de Preto: Em matéria de poesia, / de quem madame mais gosta: / Araújo Jorge ou Bandeira? / pergunto-lhe docemente: / Por fim, a sua resposta: “Não sabia que o tenente”... O tempo do poeta, em vida, mais popular do Brasil, ignorado pela crítica literária da grande imprensa e recitado nas emissoras de rádio, em programas noturnos, que dele recebiam seus livros com a dispensa dos direitos autorais: J.G. de Araújo Jorge, nomeado o Poeta das Moças. O tempo de Manuel Bandeira - indo-se embora pra Pasárgada ou a imaginar Irene na porta do Céu desobrigada de pedir licença a quem de direito. Enquanto isso, na corte fantasiosa do high society comentava-se: A senhorita Isaurinha / in love está, caidinha / pelo senhor Lino Bento./ Ao que soube este cronista,/ o moço que está na pista / tem um lindo apartamento.// À porta do Night and Day,/ toda noite, já é lei / um certo senhor passar./ O soleníssimo conde,/ que nunca andara de bonde,/ ontem resolveu andar.// Todo mundo-bem anota / em tudo que é champanhota / a presença do Jacinto./ O moço não perde vaza:/ é pontual, não atrasa./ O resto é piupiu. É pinto. Eu me referia a Jacinto de Thormes, personagem de Eça de Queiroz que Maneco Muller encarnara, à sua maneira, no divertidíssimo colunismo social carioca da época. E que dizer de Ibrahim Sued, que aos 22 anos, repórter fotográfico freelancer, colhia um flagrante que o impulsaria à notoriedade vida em frente: o parlamentar constituinte, pela Bahia, Otávio Mangabeira curvando-se para beijar a mão do general Dwight Eisenhower – em visita ao Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados nos idos em que o Rio era Capital da República. A foto histórica amanhece na 1ª página de O Globo, e não tardou que Ibrahim Sued se tornasse o colunista social de maior trânsito e prestígio no grand monde do eixo Rio-São Paulo. E resvala-se em algo como seção de achados e perdidos. Exemplo de que nem todos os perdidos são encontrados é uma “biografia romanceada de Raul de Leoni”, como Gilda Braga Linhares definira seu livro por título Sombra de um Voo, cujos originais, sem cópia, acompanhados de rico material iconográfico, de tanto andarem de mão em mão, a escritora já não sabia mais com quem estavam. Por ela procurado, Carlos Ribeiro, em sua Livraria São José, garantiu ter-lhe devolvido a obra, que a autora chegara a pensar que estivesse com a viúva de Raul de Leoni; a viúva frequentava aquela livraria. Agora, lamento não ter levado para ler em casa os originais de Sombra de um Voo, como queria dona Gilda. Eu receava que se perdessem de minhas mãos, com os fac-símiles de manuscritos do poeta de Luz Mediterranea, de quem Gilda Braga Linhares se recordava a volutear, ainda jovem, numa praça de patinação que havia onde é hoje, inteiramente desfigurado, o Rink de Niterói. Longe de mim avançar à hipótese de se tratar de um caso de ciúme póstumo o sumiço de Sombra de um Voo, que aguardava quem se interessasse em editá-lo, e apressara-me a dar a notícia, como repórter do Jornal do Brasil, numa matéria sobre a vida cultural na capital do antigo Estado do Rio. Também meu único exemplar de Um Dia Seremos Nós!, com suas 32 páginas e uma ilustração de Sílvia León Chalréo na capa, esteve desaparecido por um tempo, durante o qual fui à procura de algum em livrarias; de preferência, naturalmente, em sebos, excluindo-se bibliotecas, porque o livro, que saíra pela Editorial Vitória ainda que sem o seu selo, em nenhuma delas havia sido deixado. Enfim, acho o único exemplar que eu guardava em meio a uma barafunda em que se transformara meu escritório; o gerente de um sebo havia me explicado que até escritor de renome, decorrido certo tempo, ficava exposto a cair na reciclagem; inquisitorial? Já era o consumismo, nada mais que isso. Livro, bobagem defini-lo pelo número de páginas. Aquele meu primeiro tivera boa acolhida pela crítica. Sílvia ajudou a empurrá-lo, por sua influência no meio cultural inclusive do exterior, e dona Gilda traduzira para o francês um soneto meu, composto sob o impacto da execução, na cadeira elétrica de Sing Sing, do casal Julius e Ethel Rosemberg. Assim, também a versão francesa de Mártires da Paz acaba fazendo parte de Um Dia Seremos Nós!, e publicada na França através de uma amiga, escritora e militante política, de Gilda Braga Linhares. Vejam como ficou: Victimes de la Paix (In memoriam de Julius et Ethel Rosenberg, executès à Sing Sing le 19 juin 1953) Quelqu’um le racontera: C’était une Maison Blanche / ou, tout le monde en vain, mais de saine conscience / clamait, douloureusement, en prières de clemence / pour sauver deux vies, dont la senteur loyale et libertée / l’humanité acceuille et le chauvinisme rosse./ Tu le fixeras - Histoire Amie - avec ardeur: Sing-Sing remplie, de haine et violence. / D’une Maison Blanche, tu fixeras la negreur... / Âmes martyrisées! Les seuils s’ébranleront / au glissement de deux ombres – là bas, bien au fond./ Tu saisiras la croix que remarquait le quai. / Âmes martyrisées! Les clameurs nous éconterons:- / C’était une Maison Blanche, d’où tout le monde, / à genoux, vit l’ascension des victimes de la Paix... Os Rosenberg transpunham o ‘corredor da morte’ e eu fazia 20 anos. Mas não se esvaíra a esperança de que um dia seríamos Nós! Antes do livro, publicado em 1955, uma mensagem de Natal - de dezembro do ano anterior - que o escritor De Azevedo Rolim, autor de Pelos Caminhos do Brasil e outras obras, prosa e poesia, responde com versos chamejantes sob o título Agora já somos Nós: Sim, meu caríssimo poeta / - alma sensível de esteta, / pensamento de albatroz...: / o ‘mundo marcha’, lutemos / pois na certa venceremos / e... ‘Um dia seremos Nós!’ // Sempre integrados no povo, / pela Paz e o Mundo Novo / que além surge, entre arrebóis, / unamos as nossas liras, / da prepotencia ante as iras, / que... ‘Um dia seremos Nós!’ // Estremece o imperialismo / em face do patriotismo / dos povos erguendo a voz... / Sejamos parte integrante / dessa arrancada triunfante / ...‘Um dia seremos Nós!’ // Da nossa Pátria aos algozes / - e aos seus traidores ferozes, / quebremos o jugo atroz / reforçando as barricadas / do povo nas arrancadas, / que ‘Um dia seremos Nós!’ // Do atraso que nos degrada, / ao sol da nova Alvorada, / rompamos, de vez, os nós, / para gritar, repetindo, / na voz do mundo sorrindo: / Agora já somos Nós! Pouco antes do apeamento do governo constitucional do presidente Goulart e da caça a Leonel Brizola, então governador do Rio Grande, em 1964 eu publicava, de novo com capa de Sílvia Chalréo, A Noite Morre no Relógio, que ganharia pronto destaque na coluna literária de Lago Burnett, no Jornal do Brasil, provavelmente por causa do poema Comício. Tirei cópias da coluna de Burnett e algumas lojas de comércio as expuseram, a meu pedido, em suas vitrinas. Milhões de brasileiros, não imaginávamos que a revolução iniciada, ou anunciada, por Goulart e Brizola com o nome de Reformas de Base viesse a ser contra-atacada por militares e civis apoiados no sanguinário paiol de doutrinas da ‘diplomacia’ norte-americana. Veio, então, o golpe. Tendo sido eu informado de que meu apartamento, em Niterói, estava numa lista para ser ‘visitado’ no dia seguinte, o que de fato aconteceu. E me encontro com o poeta, ex-empresário de uma Arca de Brinquedos Cirandinha (a Arca ocupara um conjunto de salas na Avenida Rio Branco) e recordista nacional em venda de coleções de livros - Geraldo Marques, que mudara de ramo. Dizia-me ele na entrada de uma loja de artigos religiosos, praticamente numa das esquinas mais movimentadas da Av. Amaral Peixoto: “Querendo guardar alguns livros com toda segurança e proteção, estou aqui”. Trago logo para a loja a maior quantidade de exemplares da edição de A Noite Morre no Relógio. Com efeito, nenhum macaco da ‘Redentora’ pôs os pés naquele espaço; salvara-se, pois, mais uma alma... Os beleguins da ‘Redentora’ não deixaram livro sobre livro que lhes causasse suspeitas de peças de artilharia, pelo que vizinhos me contaram, tendo sido a porta arrombada. O que mais senti foi terem levado uma moviola, a ‘chapliniana’, como eu a batizara, uma máquina de cinema tocada a manivela, o maior presente de Natal que já tinha recebido, com pequenos rolos de filmes – destacando-se vários de Chaplin - cedidos a meu pai por Martins, dono do cine-teatro de Cantagalo. E em 1964, aos 31 anos, acusavam-me de projetar ideias subversivas, no que mais podia ser? - sobre um velho lençol estirado numa parede distante, onde eram feitas as projeções.

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