domingo, 14 de dezembro de 2008

Duelo de Reis


Duelo de reis

Follie!... follie!... delírio vano è questo!...(Violetta no 1° ato, cena V, de A Traviata -- ópera de Giuseppe Verdi, adaptação por Francesco Maria Piave de Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas, filho)
Um pouco mais na janela molhada da chuva, que soprava, borrifando-lhe o rosto, que bom -- e poder devassar a intimidade do Atlântico sem ser observado, foi escovar os dentes para descer. O casal à sua frente no refeitório, na verdade ela, a mulher do capitão (da marinha mercante), a falar também pelo marido, desses que alimentam uma prosa somente após recolhidos os pratos, usara de invulgar sutileza: O seu NC, permita-me chamá-lo pelas iniciais gravadas em sua bagagem, certamente não despreza umas rodadas de cartas... informais, digo, em família, quando não se tem opção melhor com este tempo e de noite; alguma objeção, seu NC, ou alguma outra idéia que se enquadre no regulamento pendurado na portaria?
A voz da mulher do capitão lhe dava, a NC, a impressão de trinado; por isso, era por isso que não enfadava (questão de gosto pessoal, porque podia ser que a outros enfadasse). Ouvindo-a, não se notava nela uma ruga! E olhem, relevado o exagero, que a duração média de cada vez que falava correspondia à de uma faixa de elepê.
Ainda no refeitório: Até ontem tivemos quem nos acompanhasse, aquele casalzinho que o senhor viu conosco quando chegou, por sinal uma simpatia os dois, não é, querido?, e partiram hoje de manhã desapontados porque ficaram sem praia, desistindo de esperar mais pelo sol, ela muito branca... Agora temos o senhor, seu NC, e uma geminiana para completar a mesa, uma moça de Gêmeos, que prometeu comparecer desde que conseguíssemos alguém de Libra para parceiro. E não vá se zangar. Prontamente eu lhe disse que não seria difícil conseguir. Pensei no senhor, seu NC, e me perdoe por ter visto a data do seu nascimento na identidade, sem querer, hein, só o dia e o mês, ontem, na hora de preencher a ficha na recepção. Ah, como se saiu na primeira entrevista? Foi com o doutor Asdrúbal? O senhor vai gostar daqui, tenho certeza. Há uns casinhos de pinel mesmo, entretanto não se impressione com eles; ficam permanentemente sob as vistas da guarda psiquiátrica. E conosco -- não é, querido? -- que gozamos de algumas regalias, o senhor se sentirá outro, melhor ainda depois de conhecer a geminiana. Pobrezinha, ela necessita de apoio; dei uma espiada na sua ficha, a ficha clínica, não aquela de hóspede. Afinal... uma mão lava a outra, não foi o que aprendemos?!
Os dentes já sem resíduos do jantar, ele agora a modelar no ar, por gestos, a geminiana tal como ideava, as suas curvas em proporção com o busto, sem agressividade aparente, a levarem devagarinho corpo acima, os olhos passeando um oceano, este oceano a ondular para as rochas que o separam do hotel; a boca, ora! a boca... de mulher. E acoplou as faces da janela para que a chuva, a apertar, não molhasse dentro.
Gente em quantidade coleando para o térreo, a maioria a se aninhar na sala da tevê e os demais dividindo-se entre o bar, a sala de leitura e a de jogos. Na sala de jogos, guardando mesa, a mulher do capitão (o capitão o cumprimenta com a cabeça a caminho do bar) -- sente-se seu NC, o meu marido foi comprar cigarros e a geminiana não deve tardar. Olhe, ela não morre tão cedo. O senhor está olhando na direção errada, disse-lhe em tom de advertência com um dedo em parafuso na fonte. Ele parara nas maçãs vistosas da cara de uma adolescente, que ao perceber lhe deu as costas, e nas costas dela se lia Kiss me my love. É aquela que saiu por último do elevador.
Ah, sim.
A mulher do capitão -- o capitão, de volta do bar, acende um cigarro e sorrindo oferece-lhe dos seus; não repare mas prefiro dos meus -- levantou-se e acenou expansiva para a moça, que retribui com requintada discrição. Vem ágil, as curvas um pouco agressivas, contrastando com a leveza do semblante; mas pode ser isso, pode, não, é isso que faz dela um tipo que apetece, ele deduziu.
Este, o moço de Libra.
Olá...!
Prazer.
Não esperava que eu fosse encontrar alguém desse signo assim tão depressa, esperava? -- a mulher do capitão pegara no braço da moça de Gêmeos.-- Para ser-lhe franca, eu o escondia no tonel das Danaides, sem saber que esse tonel não tinha fundo; senti remorso. Até ver o nosso herói de pé, a salvo de águas sem fim.
A geminiana, que agora confessava nada entender de signos (ouvira falar que Gêmeos harmonizava com Libra), a se mexer na cadeira estofada, endireita a alça da blusa de jérsei que deslizara para a junta do braço, apanha os dois baralhos que lhe passara a mulher do capitão (mais para ver se tinha condições de enfrentá-los, a ela e o marido, do que ser-lhe amável) e os mistura em repentes de prazer. O capitão e sua mulher entreolharam-se, a moça tornou a baralhar, quando a alça de novo resvala e dessa vez até abaixo do sinal deixado por vacina, um seio entremostrado, nem com ela; de fato quase ninguém usa mais sutiã, ele constatava, ele de Libra, naturalmente entre as de medidas nem tanto ao mar nem tanto à terra, lugar comum aere perennius.
Distribuídas as cartas para o leque, separadas as de comprar e do morto, a chuva a bater, a geminiana: quem sai? A mulher do capitão ofereceu-se. Recolhe o bagaço, logo um 2 de paus, faz uma trinca de curingas nus e descarta o valete de espadas; a vez é sua, seu NC.
A moça o fita, a alça já escondendo a marca da vacina, ele sem saber em que ela pensava, se na mesma coisa, uma noite juntos, ou numa prole de curingas bobos (de roupa) que a adversária talvez segurasse, por ter baixado três nus que os poderiam, depois, substituir em seqüências para oportunamente limpá-las.
Ao bagaço, aventurou-se à carta de cima do monte -- um 10 de ouros, que por não lhe servir fica exposto com o valete de espadas. Aproximara a perna direita da esquerda da parceira, que de bermuda, como ele, sentia o seu pêlo roçar, a sensação era de aquecimento, acaba suspendendo a alça; preste mais atenção no jogo.
A adolescente em cuja blusa, atrás, se lia Kiss me my love chegara-se para olhar; no ápice de suas excentricidades inclina-se e beija na boca o moço de Libra, cospe para um lado. Veio uma senhora parecendo ser da guarda psiquiátrica; querida, não atrapalhe.
Ah...! -- com ela se volatiza.
Freud... -- a mulher do capitão, no ouvido dele, não pôde concluir porque o capitão, que asseara o seu ainda há pouco, voltou-se ligeiro para o dela: Não explica bulhufas.
E apanhou uma das cartas viradas, nem toca na outra, no valete de espadas; arriou uma trinca de ases.
A geminiana excitara-se com o desvario de Kissmemylove; iniciava então, ou pretendia, uma canastra com um 2 de copas entre um valete e um rei seguido de um ás, do naipe do curinga nu, rejeita um 4 de paus. A mulher do capitão sobe ao montinho e traz... um 5 de copas, que passa a acompanhar o valete, também, descartado; é o senhor, seu NC.
A moça de Gêmeos intrigada com o NC, por que NC? -- Ele compra no baralho uma dama de copas, que limpa a seqüência ao meio, porém sujando-a na posição do 10. -- E a mulher do capitão: São as iniciais dele, filhota, bem gravadas na bagagem, capricho zodiacal. Você pode não acreditar, mas quando tinha a sua idade eu era vidrada em astrologia. Quando nós nos conhecemos -- o cotovelo no capitão, que sorri equilibrando as pestanas, pigarreia, tira rápido os óculos do bolso da camisa e sem precisar da mão com as cartas se põe atrás das lentes. Não foi, querido? Eu mantinha uma seção de horóscopo no jornalzinho lá da minha terra, valia para toda a semana, pois ele era semanário. Qual o nome mesmo?
O Vingador, seu marido descontraíra-se com um muxoxo; um jornal sem expressão.
Sem expressão, olha aqui! Influía sempre nas eleições para a prefeitura e a câmara de vereadores, e houve ocasião em que até prefeito derrubou.
Que o próprio O Vingador elegera, o capitão sibilava, a julgar pelo poder que você diz que ele tinha de decidir eleição. De influir, ela corrigiu. Que fosse, ele continuou, e porque o prefeito não atendeu ao venha a nós o vosso reino o órgão em que Madame Corina exercitava sua astrologia sentou-lhe o pau em letras garrafais; é a minha vez de jogar?
A geminiana diz que sim; esperava para deitar uma seqüência de espadas, as suas coxas... uma de encontro à outra, a alça tornou a cair, ela deixa e suspira. A mulher do capitão fecha e abre o leque de cartas, Madame Corina era meu pseudônimo. Eu na sua idade, filhota, nem pode imaginar -- o polegar voltado para o marido --, ele que o diga, ciumento como ele só, e com toda razão: tantos a me paquerarem. Até que um dia... Recorda-se, querido, de quando me mandou que escolhesse entre você e a astrologia? O que foi que lhe respondi? Você; estou mentindo?!
Depois de uma nauseante semana a desfolhar margaridas -- ele emenda protegido pelas lentes, aumentara o bagaço com um 7 de ouros, seguindo-se as espadas da geminiana --, e nada perdeu por deixar de fazer horóscopo no O Vingador; por acaso lhe pagavam?
Pagar, não me pagavam -- a astróloga não perde o trinado --, compreenda que eu fazia aquela seção simplesmente por amor à arte.
Amor à arte...! -- o capitão entre os dentes; é a sua vez de jogar.
E para me distrair... -- ela joga -- por causa das suas viagens.
Nunca viajei de navio, capitão, -- a geminiana cruzara as pernas -- mas suponho a vida no mar, em alto-mar, com momentos sem dúvida agradáveis, conforme se assiste no cinema, a um desses transatlânticos sulcando as águas com farta mordomia; agora, me desculpe, capitão, que deve ser um saco narigar todos os dias com figurinhas de comercial de tevê...
A rigor, há duas espécies de comportamento -- ele esclarece --, entre passageiros, entenda, pois o tripulante, se estranha um pouco no começo da vida de embarcado, depois acostuma-se. Há uma espécie de quem, tão aferrado a essa movimentação em terra, a menos da metade da viagem quase morre de tédio, e aquela dos que se libertam justamente pelo distanciamento de um verdadeiro labirinto que é isto aqui fora. Abrindo a alma uns com os outros.
Como numa análise em grupo, capitão?
Pode ser. -- O capitão ouvindo a chuva transporta-se ao mar, aposentara-se, retorna num instante. -- É, é o que você falou; porventura lida com público?
Um público seletíssimo, se quer saber; ela a mostrar disfarçadamente o seu leque ao parceiro, que descarta um 8 de paus.
Menos motivo teria para entediar-se ou, se preferir, para se encher numa longa viagem marítima. Pelo que me foi dado aquilatar, é de se presumir que a senhorita pega firme em salão de beleza... classe A, ou algo parecido, onde a clientela pouco muda: dona fulana, dona sicrana, dona beltrana, seus nomes e os dos maridos, ou dos amantes, e os dos cachorros a senhorita sabe de cor e salteado.
A geminiana não se sentiu ofendida, ou pelo menos não deixou transparecer a menor sombra de mágoa. Descruza as pernas, disse que trabalhava para casa de modas -- sou manequim; e fora da passarela faz uma doceira da Colombo que dispensasse seus próprios doces; adoro estar à vontade, bem do lar. A mulher do capitão engansara-se, correra a vista pela blusa de jérsei da moça, e como a se desculpar, o pescoço no natural: apreciaria muito vê-la desfilar, filhota.
Não há de faltar esse dia. -- A manequim executa a canastra formada com a ajuda de Libra, partiu para outra, pôs no centro da mesa a última carta da mão, quando sorve o joelho do parceiro a avançar por entre suas coxas, ninguém vendo, então o reteve, a sugerir que era mais ou menos assim na cama, e ele, que a tentara, parecia-lhe uma presa. E por gosto. Certa disso, ela tira do morto um novo leque e o abriu, às coxas também.
Polidamente, Madame Corina d’O Vingador lhe dá vivas; rompera o breve silêncio de enquanto a moça deitava jogo e que bastara aos dois, a ela e o libriano, para se roçarem. Cena que nem a mesa testemunhara, a menos que mesa enxergue por baixo, a geminiana conjecturava. De parabéns com a parceira, seu NC; a mulher do capitão com o polegar a prumo, arriada uma trinca pelo capitão, que, em seguida, a comprar no baralho prefere o bagaço e daí compõe uma seqüência, descarta um 3 de ouros, esfrega as mãos, vai ao morto.
Libiam nei lieti calici... Che la bellezza infiora... -- a moça de Gêmeos a falsetear o Alfredo tenor da Casa de Violetta, o compasso nos pés, abrindo e fechando as pernas para o parceiro --, bravos, capitão, mas pressinto que vou bater.
A mulher do capitão pôde ainda fazer uma canastra, embora maculada com um curinga nu; é o senhor, seu NC. Deixe para mim, sussurrou a geminiana com convicção, espichara-se até NC, e endireitando-se na cadeira acolhe o seu joelho.

II

Que partida chatérrima...! -- a mulher do capitão desbotara na contagem dos pontos, e o capitão a culpá-la por terem perdido: Também... você fala que nem uma maritaca! Ao que ela contrapôs: Por isso, não. Seu NC, por exemplo, se manteve caladão durante o jogo e nem assim foi ao morto; sem nenhum desdouro para ele, a vitória é da sua parceira. Não é, filhota? Tão calado seu NC que não sabemos o que faz na vida.
Processamento de dados. Sou analista de sistemas. E tenho um róbi, a escultura, do que, sinceramente, gostaria de viver.
Ó!... -- penitenciou-se a mulher do capitão.-- Deve ser fascinante esculpir, e que bela modelo o senhor tem à frente. Não lhe agradaria, filhota, posar para seu NC?
A manequim pisca para o parceiro, e a astróloga, após ligeira pausa, indaga dele o que faz um analista de sistemas, ela sempre interessada em saber das coisas.
Ora essa! -- o capitão interrompe. -- O nome já diz e além do mais será que partimos para o interrogatório? Acabarão julgando-nos agentes da CIA e trabalhando por trás para a KGB.
Como poderíamos pensar isto de vocês, capitão? -- A geminiana espreguiçara-se provocante. Fora da passarela, no frugal.
A chuva a cair, de vez em quando a alça; mais uma partida embaixo, ganham o capitão e sua mulher, não na contagem geral dos pontos, mas que importava certa vantagem para o casal de signos! Admitia-se o empate porque o bar fechara; que bar mais esquisitóide para a mulher do capitão, o primeiro de hotel que vejo onde não se tem o que beber. Em termos, reparou o capitão. É, em termos, de acordo sua mulher, pois não faltam refrigerante, suco de maracujá, cafezinho, cafezinho ainda que mais parecendo água de batatas.
E desceu a voz para convidá-los a uma rega de vinhos em seu apartamento.
Vinho?!... -- a moça de Gêmeos saltitou.
Psiu... -- fez a mulher do capitão. -- Podem nos ouvir.
Da guarda psiquiátrica.
São dos bons, seu NC; trouxemos dos melhores da nossa adega. Até vinho de padre, que sempre ajuda a passar na aduana o de pagão. (Aduana, no hotel, era mesmo como chamavam o serviço de revista numa sala ao lado da recepção). Acredito em Deus, seu NC. E a turma da fiscalização dá pra cheirar as calcinhas da gente à menor suspeita de trouxinha na bagagem. Veja que sacrilégio.

III

A escolher, inclusive do que mastigar.
Vocês se sirvam enquanto providencio um fundo musical; preferem clássico ou popular? Ah, que acham de ouvirmos um pouco de ópera? -- ocorre-lhe a ária que a geminiana cantarolara no térreo: -- 1º ato da Traviata, filhota; de seu gosto, não é?
Baixinho...! -- o capitão com o indicador ereto. -- Para não incomodar os alheios. Quis dizer, outros hóspedes. Bem mais baixo que a chuva, han! -- a mulher dele mostrou, o vinil a girar; junta-se aos três:
Este, o meu copo?
E com peito de soprano: Tra voi saprò dividere... Il tempo mio giocondo... Tutto è follia nel mondo...
Brindaram ao regulamento.

A mulher do capitão a insinuar que umas mãos de pôquer até que não fariam mal com o vinho; biriba é indigesto, canastra à brasileira. A geminiana resiste, porque pôquer se joga a dinheiro e termino pendurando as minhas diárias no hotel. Madame Corina do O Vingador a tranqüiliza esclarecendo que as apostas seriam de mentirinha, feitas em pertences de um modo geral, podendo-se apostar bem mais que os coelhos da cartola. Logo a moça esponjou-se no sonho de vir a se apoderar do navio do capitão.
Ele concorda em levar o seu navio à mesa, em partes, até o casco -- a ser-lhe madrasta a sorte. Sua mulher, com papel e esferográfica, a arrolar os pertences disponíveis para o jogo.

Seu NC... o que aposta?
Uma cabeça helênica de princesa, para começar.
Bom começo, seu NC, porque dentro do seu róbi.
Entre soluços, do vinho, a moça de Gêmeos avaliou o cacife do moço de Libra como equivalendo a pelo menos, calculo, o leme do capitão.
E você, filhota?
Por equivalência, de mentirinha, hein, os meus atributos de manequim.
Dispunha a mulher do capitão, para arriscar, da coroa de um rei, em ouro maciço, a cabeça do rei (habilmente decepada), o corpete de uma dama, todo em pedras preciosas; não é o bastante?
Fizeram-se as trocas por fichas. Na mesa, além dos troféus da mulher do capitão, a geminiana com metade do corpo dividido conforme as fichas que lhe couberam, o capitão com o seu navio desmontado, o moço de Libra com a cabeça helênica e outras peças do seu relicário, incluído um fragmento (em pedra) do Código de Hammurabi, embora se discutisse sua autenticidade.
O pôquer consumiu uma pilha de clássicos no toca-discos, de Verdi a George Antheil, este com a ópera Transatlântico, durando até o remate da rega com o vinho de padre, mas já sem o capitão, que por razões sentimentais correra da mesa. Antes que se esgotassem todas as suas fichas; algumas, pelo menos, reservara, no valor do camarote do comandante -- que afinal ainda sou, ele se convencera.
A geminiana, a trocar as pernas, recebe o seu pagamento em partes do navio e, por resgate, do próprio corpo. A mulher do capitão (Ajude-a, seu NC, a carregar!) de olho nos seios dela e já pensando em transplante entrega-os ao marido em vez do camarote de sua estimação, no qual muitas sonâmbulas devem ter despertado, ora se!
Você, filhota, vai armar o navio já esta noite? Aproveite seu NC. E não façam barulho, por causa da guarda. Ah seu NC, não vai levar a cabeça do rei?
Pego amanhã.
Sendo assim... tchauzinho!
Fechou a porta e corre à penteadeira a fim de apreciar os seios da geminiana.
Amanhã, querido, falarei com o doutor Asdrúbal a respeito do transplante.
Transplante!?
Sim, querido! você não quer ver a sua mulher rejuvenescida? não me quer um buxo para o resto da vida, quer?
E soprepôs as tetas viçosas às suas, como se experimentasse um vestido acabado de chegar da costureira.
Que tal fico eu?!
O capitão olhou sem grande interesse e a beija de um lado, esforçando-se para não desencantá-la; em vão.
Já sei! -- ela bufou.-- É aquele camarote fedorento, infestado de sonâmbulas.
Era, mas... sonâmbulas?! Ah! ela deve estar se referindo a visitas fortuitas no meu camarote. Na calada. Não mais que três (na lembrança) -- o capitão reclinara-se na cama, os olhos fechados, o balanço no mar. Em todos aqueles anos! Mulher tem um faro...!
Lealdade também, reconhece; a dele já o amornando com seus próprios seios, não tão caídos para a idade.
Ouça, querido, quer mesmo reaver o seu camarote?
La donna è móbile... Qual piuma al vento... Muta d’accento... E di pensiero.
De ouvir o capitão no 3º ato de Rigoletto, após um adejo mental pela Volta do Boêmio de Adelino Moreira.
Prometa-me somente uma coisa: deixar-me fazer uma faxina em regra nele, promete?
No camarote desse bandidão, ela pensou, pra tirar aquela inhaca das sonâmbulas. Entrementes...
Madame Corina d’O Vingador, doendo-lhe a consciência de uma culpa toda sua (por pura vaidade), sugeriu que fossem de uma vez aos aposentos da moça. Estou convicta de que não se oporá à troca; pelo contrário, irá até agradecer-nos.
Mal cauto il core! -- ele embrulha com todo zelo o atributo da manequim. -- Você acha mesmo?! E se ela estiver dormindo?
Meu velho...! vi a ficha clínica da moça. Meu receio é que o senhor NC tenha já aprontado o navio. Porém mesmo nesta hipótese custa esperar que eles se vistam?!
Levam também a cabeça do rei, que o analista de sistemas ficara de apanhar no dia seguinte. Mais tarde -- para condizer, pois clarear não demoraria.

IV

Batidas na entrada, a polícia! ela cismou. Quase dez, perdemos o café-da-manhã, ouve o peito do capitão sibilar, o deixaria descansar um pouco mais. Vestiu-se num zip para abrir a porta, a cabeça pesando -- do vinho ou do sangue? Algumas cartas dormiram fora do estojo. Dormiram, sim. Na mesa, esquecido, um full hand, justamente uma trinca de reis com um par de damas. Isto significava: duas damas para três reis. Pelas regras do pôquer, nada errado. Do amor...
A mulher do capitão nem quis ver o corpo. Foi logo abrindo, entra o doutor Asdrúbal. É o senhor?! E ele percebera um dado novo em seu quadro clínico, entanto não se precipitou: Eu soube que vocês dois não desceram para o café.
É verdade, disse ela após sentar-se, o coração nas mãos, a pulsar nas mãos, entrepalmara-o com força. Horrível, doutor, foi horrível; e soltou-as.
Ele pergunta pelo capitão, ela responde que dormia ainda.
Ainda!?

E meu marido não viu neres de pitibineres, ao passo que eu... Mas não toquei em nada, doutor, em nada. Não é assim que se procede no caso das digitais? Ao que o médico interpôs que não se afligisse porque dava-se um jeito.
Que jeito, doutor Asdrúbal, se o corpo está aqui dentro.!
Por um instante, ele acreditou. O capitão dormia, segundo a mulher, porém convinha ir verificar.
Com sua licença.
Já na cabeceira do capitão auscultou-lhe o corpo, a arfar de vida, embora meio em descompasso no peito. Não sendo esse o corpo a que ela se referira, o doutor Asdrúbal foi procurar no banheiro; aproveita a ocasião para esvaziar-se. Ela acaba animando-se a ajudar, aponta em direção da mesa:
Lá que ele caiu!
(Em decúbito dorsal)Ele, quem? -- doutor Asdrúbal arregala.
O rei sem dama -- a mulher do capitão surpreende por resumir. -- À falta de uma terceira dama, a fim de se servir, inconformou-se com tão incômoda provação de reles espectador. Espada em punho, desafiou um dos reis acompanhados a um duelo aqui dentro e na hora. Como vê, ele perdeu.
De fato, um rei estava sobrando na mesa. Já havia notado, o doutor Asdrúbal. Com uma testemunha de vista, não hesitou em informar a polícia.
Pela natureza da ocorrência, a polícia chegou inteira e nenhum tira ficou do lado de fora do apartamento do capitão da marinha mercante. O capitão acordara com o barulho, que lhe vinha de bordo -- antes de se desremelar, até aperceber-se que do navio restavam-lhe, além do camarote, enfim reavido, umas poucas peças sem maior serventia; tudo por causa do maldito pôquer.

V

O próprio doutor delegado -- o cabo Marcolino a relembrar na festa de sua aposentadoria -- conhecendo de termo (frente e retro) e de averiguação todos os reinos deste mundo, nunca, mas nunca mesmo, tinha visto um soberano quedado de morte súbita, quanto mais decubitado em duelo. E às vezes nem eu acredito, mas se passou em nossa jurisdição.
Do seu lugar na festa, o velho delegado de polícia daquelas beiras do Atlântico, ele que chegara à inatividade um pouco atrás do cabo e agora a desfrutava mesclando conhecimentos de ordem econômica com os de ordem jurídica, fechou o assunto puxando parábola de Shakespeare: a do gordo rei e o esquálido mendigo servidos em uma só mesa.
Ainda que por alto, o pessoal entendeu. E ninguém saiu ressentido, da mesa do cabo, com o delito por assim dizer de ilustração do delegado, que a bem da razão cuidara apenas de polir o seu senso-de-humor à medida que alçava-se a um singular desprendimento em face de crua realidade social.
Na garupa das leis que por largos anos o conduziram, nada mais pretendia da vida que viver como terminara por lamentar não o ter feito antes, embora exposto ao risco de que lhe empurrassem um outro papel de figurante letrado.
Bosta!

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