Sra. Hamlet
- I -
A descida para o telefone, que chamava, a palma no corrimão de suas travessuras em criança, deu-lhe a certeza de que despertara. Provavelmente reagiria de outro modo se o telefone estivesse no quarto, a um gesto, conquanto na dimensão bionírica, conforme o dr. Péricles Souto costumava referir-se à vida no repouso, ela houvesse testemunhado o crime e não apenas concorrido para que sucedesse.
O que sonhara, o que vivera em sonho, logo esqueceria se não a tivessem acordado para informá-la de algo, afinal, já do seu conhecimento, foi o que pensou. Ante a conexão não hesitou em ligar para o psiquiatra, mas poupando tempo com a notícia.
- ... devem tê-lo levado há menos de meia hora, doutor.
- Acalme-se. Em pouco estarei aí para apanhá-la.
Assim fez. Um toque discreto na buzina e a mulher depressa pelo jardim, entra no carro.
- Tomou o sedativo?
- Estou melhor. Quero dizer, tomei.
- Decerto o seu marido se excedeu no álcool dessa vez.
- Não se trata disso, doutor. Pouco antes daquele telefonema, eu e Roque nos encontrávamos na Praça do Manto. Veja bem: Roque, não o sr. Júlio. Dali a bocado foi que o sr. Júlio apareceu com um revólver mirado para Roque. Um só disparo...
- E a senhora acordou. Não foi mesmo, sra. Sânscrito? Francamente! Sejamos disciplinados na conceituação do produto de nossos experimentos. Um disparate relacioná-lo desta maneira a uma situação concreta. Não cheguemos a tanto, sra. Sânscrito!
A tanto. No hospital, certifica que sua suspeita justificava-se. Ouviu no corredor de acesso a uma escadaria, de uma enfermeira para outra, que o “homem da boate” achava-se na mesa de cirurgia. Depois, em tom jocoso, que o paciente jurava ter sido baleado. “Cada um que aparece...”, de uma delas.
Em todo caso, vivia: o que pensava a sra. Sânscrito, e isso a confortava. O dr. Péricles Souto, claro estava que começara a refletir, como se já se penetrasse da efetivação do absurdo. Em silêncio, e sem olhar para ela, sobe as escadas, deixando-a contraída numa sala após entender-se com alguém do hospital.
- E a senhora permaneça aqui até que o dr. Péricles volte. Relaxe.
II
Morto. Haviam tentado uma traqueotomia, mas a perda de muito sangue fazia supor ter-se rompido algum vaso como que pelo impacto de um projétil. Um projétil... Impossível. Marca de perfuração externa, nenhuma; somente a da incisão cirúrgica.
- Que acha disso, doutor? - o cirurgião avançara na abertura da traqueia, pára num estranho ferimento carotídeo. - Diria que o homem falava a verdade se...
- Feche-o, doutor. De que morreu, afinal?
No atestado por completar, anoxemia. Explicado à sra. Sânscrito, “crise sanguínea de oxigênio”. E a sra. Sânscrito nenhum interesse mostrou pela atestação. Para ela, tudo tinha raízes na Praça do Manto.
Intrigava agora ao doutor Péricles Souto, na viúva, a inversão de estereótipo ou a emersão da individualidade onírica, como podia saber?, para o lugar da desperta, no plano material. A extensão dinâmica do fenômeno era tal que a mulher já demonstrava suas apreensões pela sorte de Júlio Hamlet, que a desposara em outra dimensão e chegou ao crime por tê-la surpreendido junto de Roque Sânscrito. “Um só disparo...”
- Não o prenderam, certo? Preciso vê-lo.
- Amanhã, logo mais.
- Não! Agora.
- Passam de duas da madrugada, sra. Sânscrito!
- Senhora Sânscrito...! Não graceje, por favor. Por que impede que eu o veja?
- Não me está reconhecendo, senhora...? Sou o doutor Péricles Souto, o seu médico e de Júlio Hamlet.
- Sim! E por que não me chama sra. Hamlet!?
- Como queira... senhora Hamlet. Agora, vamos; precisa rever seu marido. Tome.
Um sonífero em água açucarada, que ela tomou de um glu. A droga atua mais rápido do que o dr. Péricles Souto calculara, na volta para casa. Ele foi do automóvel ao quarto com a viúva nos braços, a chave da entrada era a única em sua bolsa, ainda bem.
O quarto ao lado tinha uma chave para fora, sinal de que a governanta dormia na parte inferior da casa. Ele desceu ensopando o lenço, um fardo suas pernas. Caminhou para os fundos e bateu, chegou o ouvido à porta, recuou, tornou a bater, dessa vez com o punho, as frestas enfim clarearam, a governanta receou abrir.
- É o dr. Péricles! O dr. Péricles Souto, o médico!
- Sim, doutor. Um instantinho enquanto me ajeito.
Pessoas que acompanharam Roque Sânscrito até a boate contavam que ele adormecera, acharcado, sobre a mesa, com uns drinques, despertando subitamente aos gritos de que tinha sido alvejado. Não se ouvira o menor estampido, de revólver ou de champanha, mas alguma coisa rebentara dentro dele; saía-lhe sangue por entre os dentes.
Restava apurar o que se passara com Júlio Hamlet naquela noite, o que ele sonhara, se se formara mesmo um triângulo passional por inibição autógena. Dr. Péricles estava quase certo que sim. Nenhum destes pormenores, contudo, interessava à governanta; poderia parecer-lhe obscuro ou intricar mais as coisas.
Neste caso, um colapso. O corpo ainda no hospital. Sem pai, sem mãe, longe o único irmão - com uma bolsa de estudos fora do país. A governanta, que alargara os olhos, descobre a boca:
- Céus! E que faço, doutor Péricles?
- Paciência com a sra. Sânscrito. Nada estranhe que ela possa fazer. Virou a razão, entende? Talvez nem a você reconheça, porém tiraremos a dúvida quando acordar.
O mesmo comportamento, nenhum indício de recuperação. Com uma camisola - o detalhe impressionou o dr. Péricles Souto, que a deixara na cama tal como trouxera, - a senhora Hamlet, como ela se concebia, lembra-se de que Júlio podia estar preso.
- Quero vê-lo! - repisava.
Um retrato de Roque Sânscrito colocado à frente dela, entre as flores num jarro, serviu apenas para demonstrar que a reversão jamais se daria desse jeito. Ela chegou a suspeitar que a governanta o tivesse posto lá para comprometer Júlio.
Dr. Péricles concluiu que o remédio seria entregar-lhe fisicamente Júlio Hamlet no laboratório. Logo cuidou de cancelar todas as entrevistas marcadas para o dia, incumbindo a enfermeira de buscá-lo incontinenti.
III
O moço morava numa hospedaria, com outros estudantes, próximo à universidade. Completara os vinte anos sem arriscar-se a novo ensaio de acasalamento, pois lhe custara o primeiro, aos dezoito, capsulas e capsulas de antibiótico. Medo de que este resultado se repetisse, embora o apertasse a distância da iniciação, a ponto de sair agoniado à procura de um psiquiatra.
Um checape: de anormal, só aquela arritmia própria dos jovens que reprimem os impulsos do sexo; depois, a oniroterapia. Pela primeira vez era aplicado na clínica do dr. Péricles Souto o processo de introduzir estímulos verbais nas células oníricas através de um transmissor internado no ouvido. Para isso, o moço dormia duas noites por semana no laboratório. A cada experiência, sempre iniciada no limiar de um sonho a fim de controlá-lo, tornava-se mais nítido o cenário que se delineara na outra vida de Júlio Hamlet.
Na quarta experiência, a primeira solução do ciclo oniroterápico. Com uma figura feminina que ele supunha existir somente naquela dimensão e que dera para frequentar a Praça do Manto, como ficou conhecido o lugar em que se libertavam.
Uma tarde, no estado físico, o inesperado: Júlio Hamlet descobre aquela imagem de seus sonhos numa mulher que tendo descido de um ônibus pára diante dele como se o conhecesse, mas apressando-se a se desculpar; equivocara-se? De todo modo, lá se foi ela com a informação do moço de que era cliente do dr. Péricles Souto.
Não tardou que aparecesse no consultório, a princípio ocultando ao médico o encontro casual que tivera com quem lhe agradava em sonho. Cingiu-se então à desfiadura do seu problema conjugal. Já na segunda entrevista, era deitada por algumas horas, para observação, com Júlio Hamlet, no quarto pegado ao que ele ocupava, nenhum dos dois sabendo.
Ficaram em prova por várias noites, sempre em leitos afastados um do outro - ora por uma, ora por muitas paredes, - até que o dr. Péricles Souto perde o controle da oniroterapia sobre o casal, ante a aparição de Roque Sânscrito na Praça do Manto.
“Um só disparo...”
“E a senhora acordou. Não foi mesmo, sra, Sânscrito?”
“E por que não me chama sra. Hamlet!?”
Assim a chamou. E ela acaba saindo dos braços de Júlio Hamlet consciente da viuvez - desta vez não foi sonho - a tempo de alcançar os funerais do marido.
- I -
A descida para o telefone, que chamava, a palma no corrimão de suas travessuras em criança, deu-lhe a certeza de que despertara. Provavelmente reagiria de outro modo se o telefone estivesse no quarto, a um gesto, conquanto na dimensão bionírica, conforme o dr. Péricles Souto costumava referir-se à vida no repouso, ela houvesse testemunhado o crime e não apenas concorrido para que sucedesse.
O que sonhara, o que vivera em sonho, logo esqueceria se não a tivessem acordado para informá-la de algo, afinal, já do seu conhecimento, foi o que pensou. Ante a conexão não hesitou em ligar para o psiquiatra, mas poupando tempo com a notícia.
- ... devem tê-lo levado há menos de meia hora, doutor.
- Acalme-se. Em pouco estarei aí para apanhá-la.
Assim fez. Um toque discreto na buzina e a mulher depressa pelo jardim, entra no carro.
- Tomou o sedativo?
- Estou melhor. Quero dizer, tomei.
- Decerto o seu marido se excedeu no álcool dessa vez.
- Não se trata disso, doutor. Pouco antes daquele telefonema, eu e Roque nos encontrávamos na Praça do Manto. Veja bem: Roque, não o sr. Júlio. Dali a bocado foi que o sr. Júlio apareceu com um revólver mirado para Roque. Um só disparo...
- E a senhora acordou. Não foi mesmo, sra. Sânscrito? Francamente! Sejamos disciplinados na conceituação do produto de nossos experimentos. Um disparate relacioná-lo desta maneira a uma situação concreta. Não cheguemos a tanto, sra. Sânscrito!
A tanto. No hospital, certifica que sua suspeita justificava-se. Ouviu no corredor de acesso a uma escadaria, de uma enfermeira para outra, que o “homem da boate” achava-se na mesa de cirurgia. Depois, em tom jocoso, que o paciente jurava ter sido baleado. “Cada um que aparece...”, de uma delas.
Em todo caso, vivia: o que pensava a sra. Sânscrito, e isso a confortava. O dr. Péricles Souto, claro estava que começara a refletir, como se já se penetrasse da efetivação do absurdo. Em silêncio, e sem olhar para ela, sobe as escadas, deixando-a contraída numa sala após entender-se com alguém do hospital.
- E a senhora permaneça aqui até que o dr. Péricles volte. Relaxe.
II
Morto. Haviam tentado uma traqueotomia, mas a perda de muito sangue fazia supor ter-se rompido algum vaso como que pelo impacto de um projétil. Um projétil... Impossível. Marca de perfuração externa, nenhuma; somente a da incisão cirúrgica.
- Que acha disso, doutor? - o cirurgião avançara na abertura da traqueia, pára num estranho ferimento carotídeo. - Diria que o homem falava a verdade se...
- Feche-o, doutor. De que morreu, afinal?
No atestado por completar, anoxemia. Explicado à sra. Sânscrito, “crise sanguínea de oxigênio”. E a sra. Sânscrito nenhum interesse mostrou pela atestação. Para ela, tudo tinha raízes na Praça do Manto.
Intrigava agora ao doutor Péricles Souto, na viúva, a inversão de estereótipo ou a emersão da individualidade onírica, como podia saber?, para o lugar da desperta, no plano material. A extensão dinâmica do fenômeno era tal que a mulher já demonstrava suas apreensões pela sorte de Júlio Hamlet, que a desposara em outra dimensão e chegou ao crime por tê-la surpreendido junto de Roque Sânscrito. “Um só disparo...”
- Não o prenderam, certo? Preciso vê-lo.
- Amanhã, logo mais.
- Não! Agora.
- Passam de duas da madrugada, sra. Sânscrito!
- Senhora Sânscrito...! Não graceje, por favor. Por que impede que eu o veja?
- Não me está reconhecendo, senhora...? Sou o doutor Péricles Souto, o seu médico e de Júlio Hamlet.
- Sim! E por que não me chama sra. Hamlet!?
- Como queira... senhora Hamlet. Agora, vamos; precisa rever seu marido. Tome.
Um sonífero em água açucarada, que ela tomou de um glu. A droga atua mais rápido do que o dr. Péricles Souto calculara, na volta para casa. Ele foi do automóvel ao quarto com a viúva nos braços, a chave da entrada era a única em sua bolsa, ainda bem.
O quarto ao lado tinha uma chave para fora, sinal de que a governanta dormia na parte inferior da casa. Ele desceu ensopando o lenço, um fardo suas pernas. Caminhou para os fundos e bateu, chegou o ouvido à porta, recuou, tornou a bater, dessa vez com o punho, as frestas enfim clarearam, a governanta receou abrir.
- É o dr. Péricles! O dr. Péricles Souto, o médico!
- Sim, doutor. Um instantinho enquanto me ajeito.
Pessoas que acompanharam Roque Sânscrito até a boate contavam que ele adormecera, acharcado, sobre a mesa, com uns drinques, despertando subitamente aos gritos de que tinha sido alvejado. Não se ouvira o menor estampido, de revólver ou de champanha, mas alguma coisa rebentara dentro dele; saía-lhe sangue por entre os dentes.
Restava apurar o que se passara com Júlio Hamlet naquela noite, o que ele sonhara, se se formara mesmo um triângulo passional por inibição autógena. Dr. Péricles estava quase certo que sim. Nenhum destes pormenores, contudo, interessava à governanta; poderia parecer-lhe obscuro ou intricar mais as coisas.
Neste caso, um colapso. O corpo ainda no hospital. Sem pai, sem mãe, longe o único irmão - com uma bolsa de estudos fora do país. A governanta, que alargara os olhos, descobre a boca:
- Céus! E que faço, doutor Péricles?
- Paciência com a sra. Sânscrito. Nada estranhe que ela possa fazer. Virou a razão, entende? Talvez nem a você reconheça, porém tiraremos a dúvida quando acordar.
O mesmo comportamento, nenhum indício de recuperação. Com uma camisola - o detalhe impressionou o dr. Péricles Souto, que a deixara na cama tal como trouxera, - a senhora Hamlet, como ela se concebia, lembra-se de que Júlio podia estar preso.
- Quero vê-lo! - repisava.
Um retrato de Roque Sânscrito colocado à frente dela, entre as flores num jarro, serviu apenas para demonstrar que a reversão jamais se daria desse jeito. Ela chegou a suspeitar que a governanta o tivesse posto lá para comprometer Júlio.
Dr. Péricles concluiu que o remédio seria entregar-lhe fisicamente Júlio Hamlet no laboratório. Logo cuidou de cancelar todas as entrevistas marcadas para o dia, incumbindo a enfermeira de buscá-lo incontinenti.
III
O moço morava numa hospedaria, com outros estudantes, próximo à universidade. Completara os vinte anos sem arriscar-se a novo ensaio de acasalamento, pois lhe custara o primeiro, aos dezoito, capsulas e capsulas de antibiótico. Medo de que este resultado se repetisse, embora o apertasse a distância da iniciação, a ponto de sair agoniado à procura de um psiquiatra.
Um checape: de anormal, só aquela arritmia própria dos jovens que reprimem os impulsos do sexo; depois, a oniroterapia. Pela primeira vez era aplicado na clínica do dr. Péricles Souto o processo de introduzir estímulos verbais nas células oníricas através de um transmissor internado no ouvido. Para isso, o moço dormia duas noites por semana no laboratório. A cada experiência, sempre iniciada no limiar de um sonho a fim de controlá-lo, tornava-se mais nítido o cenário que se delineara na outra vida de Júlio Hamlet.
Na quarta experiência, a primeira solução do ciclo oniroterápico. Com uma figura feminina que ele supunha existir somente naquela dimensão e que dera para frequentar a Praça do Manto, como ficou conhecido o lugar em que se libertavam.
Uma tarde, no estado físico, o inesperado: Júlio Hamlet descobre aquela imagem de seus sonhos numa mulher que tendo descido de um ônibus pára diante dele como se o conhecesse, mas apressando-se a se desculpar; equivocara-se? De todo modo, lá se foi ela com a informação do moço de que era cliente do dr. Péricles Souto.
Não tardou que aparecesse no consultório, a princípio ocultando ao médico o encontro casual que tivera com quem lhe agradava em sonho. Cingiu-se então à desfiadura do seu problema conjugal. Já na segunda entrevista, era deitada por algumas horas, para observação, com Júlio Hamlet, no quarto pegado ao que ele ocupava, nenhum dos dois sabendo.
Ficaram em prova por várias noites, sempre em leitos afastados um do outro - ora por uma, ora por muitas paredes, - até que o dr. Péricles Souto perde o controle da oniroterapia sobre o casal, ante a aparição de Roque Sânscrito na Praça do Manto.
“Um só disparo...”
“E a senhora acordou. Não foi mesmo, sra, Sânscrito?”
“E por que não me chama sra. Hamlet!?”
Assim a chamou. E ela acaba saindo dos braços de Júlio Hamlet consciente da viuvez - desta vez não foi sonho - a tempo de alcançar os funerais do marido.
Meses adiante vinha-lhe o primeiro filho, que levou o nome de Roque.
Publicado originalmente em O Fluminense, no suplemento Prosa & Verso, sob a direção de Sávio Soares de Sousa e Marcos Almir Madeira, em 28-6-1969, por Fernando Henriques Gonçalves
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