domingo, 14 de dezembro de 2008

Uma história de guerra


Uma história de guerra*

1. Avisados do progresso das tropas inimigas cuidamos, eu e Fausta, de nos antecipar no recolhimento, programado para a semana seguinte, ao sítio que reformáramos fazia pouco: do moinho – passando por onde dormia Quebra-Nozes, perto e à esquerda do jardim, distanciadamente da estrada – às duas casas emparelhadas de fundo para a enorme pedreira que parecia arriar sobre o matagal quando ele escurecia, desde que não houvesse luar.
Fausta esperava filho. Fracassara uma vez e fracassaria de novo se o estrépito cadenciado de botas em nossa rua, a que de certo modo nos acostumáramos, fosse sufocado por outros calcanhares.
Não cheguei a dizer-lhe que, pelo que contara um mutilado, os homens talhados para a subjugação marchavam com tanta força que caricaturavam as britadeiras do nosso tempo de paz. Ele amargara quase um dia dentro da farda de um inimigo tombado na fronteira, podendo desse modo atravessá-la e, depois, retornar como prisioneiro dos próprios aliados, por instantes, até o identificarem, para acabar sendo alvejado em combate.
Ao passar acelerado pela rua do hospital, para ninguém de lá cumprimentar-me ou reconhecer pelo carro, me perguntei se o que eu fazia não seria deserção. Caso visse algum de meus colegas ou dos enfermeiros acenar, fizesse-o mesmo alguém da recepção, do que eu seria capaz? De parar, descer e, na melhor hipótese, retomar o volante sob o compromisso de voltar logo que instalasse minha mulher...
- Alexandre!
Freei com Fausta estreitando-me o pulso, fazendo-me idear momentaneamente uma vítima. Ao grito dela sucedeu o olhar de um menino que estacara no passeio. Chamei-o para o afagar um pouco e desculpar-me da imprudência, mas Fausta foi quem conseguiu desanuviá-lo, com um beijo. Então ele quis saber para onde íamos, e soube, inclusive por quê. Fizéramos uma encomenda à cegonha, tergiversei, ao que o menino retrucou empolando-se:
- Já vi como se nasce, senhor. E sou o caçula!
- Quantos irmãos tem você? – interessei-me.
- Somos seis. Dois estão na fronteira, e se a guerra chegar até aqui... Vai chegar, não vai?
- Espero que não. Mas, diga!
- Se chegar, também serei um soldado.
Fausta beijou-o mais uma vez enquanto eu reaquecia o motor e largou-se a meu ombro. Dava a entender que se recompusera do susto. Não deixou, contudo, de censurar-me pela desatenção ao volante.
- Aposto que pensava no hospital.
- Ganhou.
- Não foi dispensado, querido?
- Não apenas devido ao seu estado como...
- Falo por você. Também em reconhecimento pelas noites que varou em claro e que não foram poucas.
- È verdade. E se precisarem de mim?
- Todos precisam de todos em toda parte. Pense bem nisto.
Pensei. E foi assim que pude admirar em minha esposa uma dimensão de companheira. Envaideci-me de tê-la a meu lado para procriar. Quando a guerra escorresse para ali o caçula quase atropelado pegaria em arma.,Quanto a mim, a ficar exposto a metralhas na cidade, embora longe dos ambulatórios e das enfermarias organizadas, seria mais útil no sítio. Neste caso, o recuo de combatentes nossos os faria semear acampamentos em direção das rosas cultivadas a um passo da morada de Quebra-Nozes. No carro eu levava todo um instrumental de emergência, muitos medicamentos e um revólver de fácil manejo.
Fausta chamou-me a atenção para um motociclista que avançara à nossa frente. Eu ignorava que ela havia posto minha documentação no porta- luvas. Em ordem. Mas já outro patrulheiro, chegado em seguida, queria revistar nosso veículo, naturalmente porque no banco de trás, tomado até à capota por uma complicação de peças de andar, de dormir e de medicar, podia estar escondida alguma coisa que só ele imaginara. Aquietou-se quando o seu companheiro esclareceu que eu era “um doutor do Hospital Central”.
Prosseguimos. Lembrei-me do rádio ao rufarem os tambores de Rossini. Aumentei-lhe o som e foi repetida uma proclamação oficial que ouvíramos de manhã e que em nada alterava a situação. Exortava o povo a manter-se confiante no poderio dos aliados e alerta para mobilização geral, caso fosse necessário.
- Quer dizer...
- Isso mesmo. Nada mais do que você pensou quando a nota foi divulgada pela primeira vez.
- Responda-me, Alexandre. Por que procura esconder de mim que é grave?
- Você sabe o motivo – e localizei-o em seu regaço, que fitara de propósito.
- Não se preocupe, meu caro – reagiu, surpreendendo-me com esse tratamento. Deve haver algum general que se tenha curvado a baratas. E nem por isso, meu caro, deixou de ser promovido. Que tal o raciocínio da sua mulher?
Acolho-o como a um filho. Menos apreensivo, entenda-se que puramente quanto a uma batalha genética – agora, confesso que nossa vitória nos confrontos de guerra mesmo nada significaria sem aquela que há muito vínhamos perseguindo na intimidade – cubro as léguas restantes para a chegada.
Tendo alcançado a estrada de acesso ao sítio, notei que o cheiro silvestre fazia tão bem a Fausta que os solavancos não pareciam perturbá-la. Porém, reduzi a velocidade, até porque estávamos já nos arredores de nossas terras. Pouco mais, seguidos festivamente por Quebra-Nozes, ladeávamos o passadouro para o canteiro de rosas. Quebra-Nozes, que parara de latir, rabeava ao sairmos do carro, quando avistamos o bom casal Laurence-Elisa vindo apressado do outeiro com suas três crianças.
Foi por ter sido Laurence um dos meus primeiros clientes que lhe confiei o sítio para administrar. E deu certo. Também eram filhos dele e de Elisa as hortaliças, o pequeno canavial, o pomar e, também, as rosas que Fausta tanto apreciava, incluindo o pastor-alemão Quebra-Nozes – que nada tinha a ver com a paranóia do Führer.
- Que surpresa, doutor Alexandre! – Laurence meio sem jeito como se tivesse cometido algum delito.- Ainda há pouco eu dizia a Elisa que... que com certeza a guerra apertou.
- Agradável ou desagradável a surpresa, Laurence? – ajudei-o, com um sorriso, a desembaraçar-se.
- Agradável, por um lado. Mas... desculpe-me, doutor Alexandre, mas só hoje é que ia pegar na limpeza da casa.
- Não está assim tão suja – Elisa atalhou – Entanto o senhor compreende, merece uma ajeitação. Quebra-Nozes!
Elisa resmungava e sacudia-se do pó levantado pelo pastor, que batera boa parte da estrada no rasto de um cabrito.
- Também... – ela assoou-se com um lenço que puxara da cabeça.- Desde que aprendeu o caminho, este bicho vive a rondar a horta. Chegou a comer um pé de couve, sem que passasse disso, felizmente, pois Quebra-Nozes não lhe dá trégua.
Laurence havia subido com o carro para o abrigo, e Fausta, levando Quebra-Nozes pela coleira até ao jardim, quis fazê-lo se afeiçoar às rosas para que as protegesse do mesmo modo como afugentara o cabrito namorador das hortaliças. Arte da prenhez, pensei, e Fausta bem o leu em meu rosto, porque logo relacionou a idéia de vir a transformar o cão no anjo da guarda de suas flores à dúvida em que dizia colocar a segurança do gradil.

2. Fausta descia todas as manhãs para passar em revista as suas flores e lá encontrava Quebra-Nozes de vigia. De ver como ela conseguira, nos poucos dias de treinamento a que o submetera, fazer do pastor um excelente soldado. Ao assistir a uma dessas aulas, engoli a cisma pelo que pudesse acontecer. E Fausta não acreditava que um estranho tivesse a coragem de acercar-se do gradil para aspirar o perfume de uma rosa, muito menos para colhê-la.
Afluíram notícias de que os nazistas haviam tomado nossas posições fronteiriças e que as baixas nas fileiras aliadas eram de alarmar: o que me fez crer na iminência de uma ocupação e a imaginar como devia pesar a marcha de invasores pela rua do Hospital Central. Lembrei-me do testemunho do mutilado e presumi o caçula da prole de seis irmãos a trocar o bodoque por alguma arma de fogo. Pela primeira vez, no sítio, amanhecemos ouvindo bombas, se bem que estouradas a uma boa distância dali.
Fausta; sei que ela notou; não escancelara os olhos mais do que eu, e deste ponto para o de sobrepor-se às minhas ou às suas próprias apreensões foi um palmo. Não me senti diminuído por ter-se dado o inverso do que normalmente aconteceria a outros casais em tal circunstância. Pelo contrário, essa inversão de reações teve a grandeza de encorajar-me na esperança de que minha gestante se saísse bem.
- Acordaram com as bombas? – Elisa largara as batatas, que descascava, a fim de servir-me algo.- Laurence voltou agorinha lá de baixo. E sabe, doutor Alexandre? Fausta não deve se impressionar. Deus olha sempre mais um pouco por quem anda assim como ela. Laurence viu uma carreira deles no entroncamento.
- Mãe!
- O filho da senhora Nadejda...
- Deixa eu falar! O pai dele disse...
- O pai dele não, mãe! Foi o filho da senhora Nadejda quem disse!
- Diz logo que foi Boris quem falou que o pai dele viu...
- ...uma porção de soldados diferentes!
- É sim, mãe!
- Já sei! Já sei! O seu pai também viu. E deixem de andar fora de casa.
- Nós só estávamos perto da casinhola de Quebra-Nozes.
- Nem lá quero vocês.
Enquanto Elisa advertia as suas crianças de que não deviam arredar-se de casa, sob pena de os soldados diferentes dos nossos carregá-las, eu me esforçava para comer e fazer crer a Fausta de que nada daquilo que ouvíramos desassossegava-me. De sua parte, era espantoso que não demonstrasse a menor inapetência.
Laurence chegava com bons punhados de uvas, o seu filho maior foi logo dizendo terem sido elas colhidas especialmente para Fausta. Em tempo algum eu notara tanta beleza num cacho de uvas. Pelo menos essas estavam a salvo das bombas, que já não muito longe de nossa videira arrancavam raízes para ensanguentar a terra.
A despeito de certa serenidade que Fausta denotava, reagindo não sei se irrepreensível ou extraordinariamente a essa evolução de estímulos inquietadores, tive de levantar a voz a fim de impedir que minha mulher descesse para rever as rosas guardadas pelo pastor, como tomara por hábito fazer antes do almoço.
Em meu pensamento, as rosas tanto exsurgiam do cabelo de uma jovem casadoura como baixavam a cada cova aberta pelos bombardeios. A intranquilidade morrera em Fausta para reviver em mim, porém essa transposição confortava-me na medida em que eu esperava ser pai.

3. Com a nossa chegada ao sítio, Elisa passara a utilizar a cozinha da casa contígua àquela que Laurence, ela e os filhos ocupavam. Ficávamos quase sempre juntos. Só à noite nos dividíamos, indo Laurence e a família recolher-se à outra casa, depois de algumas partidas de poquer ou de uma desfiadura de histórias.
- Conte-nos, hoje, uma de guerra!
O pedido de Paul, a mais birrenta das três crianças, sacudira-me. Conquanto essa noite não diferisse, pelo menos até então, de nenhuma outra do tempo em que estávamos fora da cidade, senão pelo luar sobre a pedreira, as detonações ouvidas dali durante o dia haviam bastado para inibir-me. Agora, no outeiro que em tão boa hora eu escolhera para repouso e terminou servindo de refúgio, a quietação era de fim de mundo ou de bosque de fadas.
E Paul queria uma história de guerra, uma bem emocionante; já os seus irmãos cruzavam as pernas sobre o assoalho, encarando-me, à espera de que eu começasse a contar. Embora não fosse propriamente do gênero que Paul impusera, um conto de Hoffmann poderia agradar-lhe em cheio, pensei, aquele do bailado de Tchaikovsky, desde que principiasse pelos soldadinhos açucarados.
Concebi, assim, uma variante do tema do Quebra-Nozes, prolongando a vida dos soldadinhos na refrega com os camundongos, até a aparição do príncipe, que armei de espada para que os abatesse com dignidade e não, simplesmente, os espavorisse.
- Não ficou de pé um camundongo. E todo aquele exército tinha sido armado de espadas a um passe de mágica do príncipe.
- Acabou? – os três em uníssono a uma pausa do médico.
- Que nada! Falta a luta do príncipe com o rei dos camundongos.
- Ele também era rato? – Paul, o mais interessado.
- Era. Com uma diferença. Sendo ele rei, tinha um trono, do qual somente desceu porque seu povo havia sido exterminado. Bem... Mas sua majestade, o rei da rataria, era pouco maior que um pé do príncipe.
- Então, foi um despropósito!
- Não. Porque o príncipe, como possuía poderes mágicos, fez um gesto... e pronto. O rei ficou da sua altura. E até mais troncudo, sendo um rato. Parecia um gorila.
- O que estará havendo lá embaixo? – Laurence interrompe-me ante os latidos violentos de Quebra-Nozes.
- E nisso começaram a lutar.- Paul absorvera-se na história.
- Cale-se, menino! – Elisa corre para junto de Laurence, que procurava distinguir algo pela janela.
Fausta dormia na poltrona. Agasalhei-a, apaguei a única luz que acendíamos durante a guerra e saí com Laurence, caminhando por entre as árvores, cautelosamente, ele adiante de mim, porém eu tropeçava ao perceber que o pastor, agora, rosnava cada vez mais perto de nós. Laurence levava uma carabina e lamentei não ter trazido meu revólver. Devagar, fomos contornando o pomar pelo lado da pedreira, as folhagens mais distantes assustavam-me, alguma delas podia estar coroando uma cabeça inimiga que estivesse plantada para o ataque. Bambeei, sustive-me num carvalho quando meu companheiro recuou a palma da mão avisando-me que parasse. Não demorou, solta o seu pasmo:
- Incrível! Venha ver, doutor Alexandre.
Dois soldados do Reich vencidos a dentadas. Da boca de um deles o sangue manava para uma rosa, a rosa que um inimigo atrevera-se a puxar do jardim de Fausta.
- Não temos tempo a perder, doutor Alexandre.
Concordei com Laurence e cuidei logo de ajudá-lo no arrastamento dos corpos para bem longe da estrada. Feito isso, fomos em busca das ferramentas para a cavação. Fausta acordara, mas tanto ela como Elisa tiveram que aguardar nosso retorno para saber da façanha de Quebra-Nozes.
Um quebra-nozes virara príncipe. A Paul e seus irmãos eu devia esta explicação, além do fecho da história. Quitei-me com eles quando pudemos acender todas as luzes.


O Fluminense, suplemento Prosa & Verso, com o título “Manava para uma rosa”, 29-12-1969, fernando h.gonçalves, revisto pelo autor

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